Esse facto tornou-se evidente a partir do final do século XVII, através da negação do nome original do escravo trazido para a ilha, ao qual se atribuiu um novo nome por meio do batismo. Esta negação da identidade dos escravos e da sua inscrição na ancestralidade e na parentalidade caracterizava as práticas dos poderes coloniais e seria sistemática durante o tráfico de escravos, inicialmente legal e, mais tarde, ilegal.
Só em 1848, aquando da sua inserção nos registos de alforrias, com menção feita à filiação e ascendência, é que a situação familiar dos escravos foi reconhecida através da sua humanidade.
Em qualquer sociedade é a estrutura familiar que está na base da organização social, assegurando a sua continuidade, e constituindo o vetor linguístico e cultural permanente.
Por conseguinte, longe de minimizar o papel da família escrava, é importante compreender a sua formação e o papel essencial que desempenhou como forma de oposição, de resistência, aos vários poderes políticos, económicos e religiosos que a negaram, denegriram, desprezaram e muitas vezes ignoraram .
De facto, a população escrava crioula passou de apenas algumas unidades por volta de 1670 para quase 40 000 em 1848. Este fenómeno significa simplesmente que os escravos introduzidos na ilha tiveram descendentes e que, por sua vez, esses descendentes também os tiveram ao longo de quase 150 anos. Tal indica que durante a totalidade desse período existiu uma estrutura familiar que é necessário definir.
A prática do aborto, como em todas as sociedades humanas, foi oficialmente proibida; os chás de plantas medicinais e outras tisanas foram sem dúvida utilizados como meio de regulação, tanto por brancos como por escravos. Todavia, a prática comum era assegurar a descendência, caso contrário, como seria possível tornar-se um “antepassado”?
Esta elevada proporção de escravos crioulos, pese embora o recurso ao tráfico de escravos, oficialmente até 1817, mas efetivamente até aos anos 1830, é a prova do apego dos escravos à noção de família.
Excetuando os primeiros anos da Companhia das Índias, os senhores desconheciam a ascendência dos escravos vítimas do tráfico porque esse fator não lhes interessava. No entanto, até à sua chegada a Bourbon, todos eles possuíam antepassados, bem como um nome que muitas vezes os situava na parentalidade.
A escravatura é geralmente definida como a antítese da parentalidade. O sistema e a ideologia esclavagistas baseiam-se na não parentalidade dos escravos, bem móveis que carecem de uma identidade social e familiar. De acordo com C. Meillassoux : “Através da captura, ele foi arrancado da sua sociedade de origem e dessocializado. Devido à forma como foi integrado na sociedade de acolhimento e aos laços que tinha com os seus senhores, foi então descivilizado e despersonalizado, até mesmo dessexualizado”.
Para H. Gerbeau , a perda de identidade e de inscrição num grupo de filiação é evidente: “As mães que são desenraizadas dos seus filhos perdem frequentemente o gosto pelos alimentos. O desenraizamento da aldeia nativa escava um poço de solidão no ventre onde os antepassados e os descendentes se afogam”.
Assim, nas Cartas Patentes de 1723, “Code Noir de Bourbon” (Código Negro de Bourbon), muitos artigos referem-se à vida privada dos escravos, particularmente na sua dimensão familiar. A razão para haver no Código tantos artigos relativos à questão deve-se ao facto de os poderes da época estarem preocupados em controlar tudo o que pudesse permitir aos escravos passar do estado de “propriedade móvel” ao de “pessoa humana”. O artigo IV exclui os escravos da parentalidade: eles não são filhos ou filhas de alguém. A autoridade dos pais naturais é negada mesmo que, como no início do século XVIII, eles formem um casal reconhecido pelas autoridades religiosas. O Artigo VIII refere os filhos de escravos que pertencem ao senhor e sobre os quais os progenitores não têm qualquer legitimidade. Embora a mãe seja mencionada como estando vinculada à criança até aos sete anos da mesma, não há qualquer referência ao pai. Durante mais de um século, este regime foi aplicado aos escravos de Bourbon. O Código Decaen, em 1803, um avatar local do Código Civil de Napoleão, deu continuidade a esta abordagem
A separação dos membros da família escrava era a regra, por vezes por ocasião de vendas, mas sobretudo aquando de eventos ocorridos na família do senhor (mortes, casamentos, heranças e partilhas). Os documentos notariais relacionados com esses acontecimentos são uma das fontes que nos permitem afirmar que apesar da negação da família escrava, muitos senhores estavam conscientes da sua realidade e por vezes organizavam a sua sucessão tendo em conta os laços familiares dos escravos.
Entre as negações da humanidade dos escravos, M. Périna assinala o direito de fundar uma família:
não existe para os escravos nem nascimento, nem casamento, nem morte […] Para ser exato, tudo decorre como se não houvesse, ou devesse haver, nascimento, casamento ou morte do escravo. Pois isto é a negação do que claramente existe, apesar de tudo, no universo esclavagista.
Em 1735, 30% dos escravos haviam nascido na ilha sendo, na maioria dos casos, possível identificar ambos os progenitores. A plantação especulativa de café nessa altura, e consequente recurso maciço ao tráfico de escravos, resultou na perda total da identidade dos mesmos.
Durante as primeiras décadas de colonização, as uniões religiosas eram numerosas e os certificados de batismo mencionavam regularmente a mãe e, muitas vezes, o pai. Na mesma época, a desumanização dos escravos caracterizava-se pela obrigação de os “desbatizar” e rebatizar de acordo com os critérios da religião católica.
Embora reconhecidas, estas uniões não davam azo ao reconhecimento da autoridade dos pais sobre as crianças, que permaneciam propriedade dos senhores, e a proibição da separação das crianças pubescentes dos seus progenitores foi geralmente respeitada até à idade de 7-8 anos.
Durante o período entre a Revolução e a Restauração, as fontes de registos de nascimentos, casamentos e mortes da população escrava ou eram inexistentes ou muito incompletas, pelo que se torna mais difícil precisar a situação das famílias escravas.
É portanto mais fácil compreender a situação dos antigos escravos, os que haviam sido alforriados pelos seus senhores e que eram conhecidos como Livres de Cor, observando-se o mesmo fenómeno de estruturação familiar anterior à emancipação, bem como a mesma quantidade considerável de filhos. Um estudo dos autos de alforria deste período revela o grande número de ex-escravos que emanciparam os filhos, o pai, a mãe, os avós, os tios ou os sobrinhos e até membros da família espiritual, afilhados ou madrinhas.
A obtenção da cidadania pelos recém-libertados resultou principalmente na legalização de uniões antigas e, por vezes, na perfilhação pelo pai de filhos cuja mãe havia falecido antes de 1848.
Por exemplo, em St Leu, em 1849, dois crioulos nos seus setenta anos, mencionando os seus antepassados, casaram-se e perfilharam cinco filhos com idades compreendidas entre os 25 e os 40 anos. Uma hora após a união do casal, um dos filhos casou-se, reconhecendo pela mesma ocasião três filhos com idades compreendidas entre os 3 e os 15 anos, nascidos sob a escravatura. Quatro gerações de escravos surgem, assim, nestes autos.
Entre 1849 e 1860, foram registados milhares de casamentos, resultando no reconhecimento de milhares de filhos, todos eles testemunhos de que havia uma vida familiar antes de 1848 que, naturalmente, assumia diversas formas. A coabitação estava longe de ser a regra e a prova reside nos inúmeros reagrupamentos familiares cujo lugar de residência declarado era o do contratador, quer do pai quer da mãe.
Globalmente, o número de pessoas que viviam em famílias unidas religiosamente antes de 1848 ascende a 50 000, ou seja, mais de 75% dos escravos.
Este valor, embora corresponda aproximadamente ao dos escravos crioulos, inclui também muitos não-nativos: cafres, malgaxes, indianos e malaios encontram-se entre os progenitores que viveram em estrutura familiar.
Neste sentido, as mulheres malaias, africanas e malgaxes estavam, na sua maioria, integradas numa estrutura familiar. No caso dos homens, devido ao desequilíbrio na proporção entre os sexos (60% dos homens para 40% das mulheres em 1848), o número de escravos não-nativos na mesma situação é bastante inferior.
A reconstituição das famílias escravas permite compreender as formas de organização familiar presentes na época da escravatura. Conclui-se que as estruturas existentes nos países de origem não puderam ser mantidas, por um lado, devido às alianças predominantemente exógenas a nível étnico, mas também devido à organização social inerente à escravatura.
Além disso, havia vários tipos de famílias, consoante a propriedade, o número de escravos e as estratégias económicas dos senhores. Por vezes, as famílias residiam na mesma propriedade e agrupavam três ou quatro gerações. Os pais eram frequentemente identificáveis. Noutros casos, a dispersão dos membros da família era a noma. Frequentemente, o homem, o pai ou o cônjuge, residia noutra propriedade pertencente à mesma família de senhores.
Os movimentos de escravos, ainda que regidos por uma codificação rigorosa, eram frequentes entre essas propriedades. Testemunhos de padres ou representantes do poder civil e económico indicam a tolerância dos senhores para com as atividades noturnas dos seus escravos que, uma vez terminado o dia de trabalho, não hesitavam em percorrer longas distâncias para encontrar uma pessoa que lhes era próxima.
Nos grandes latifúndios, as alianças efetuavam-se amiúde entre escravos do mesmo senhor. Por exemplo, na propriedade dos Desbassayns, em Saint-Paul, ou na de Sicre de Fontbrune, em Sainte-Suzanne, é possível reconstituir “dinastias” de escravos durante quase todo o período da escravatura.
Nas propriedades desses senhores, a população crioula era dominante, graças à presença significativa de crianças. Importa salientar que não há vestígios em Bourbon de uma “quinta de criação” de escravos, como foi o caso nos Estados Unidos.
A demografia dos escravos caracteriza-se por uma fertilidade elevada e precoce entre as mulheres. A maternidade antes dos 10 anos de idade era excecional, porém a idade da mãe aquando do nascimento do primeiro filho situava-se frequentemente entre os 12 e os 15 anos. A elevada taxa de mortalidade infantil, que afetava principalmente a população escrava, mas também, em menor grau, a população livre, resultava numa baixa taxa de crescimento natural, ainda que estes termos não sejam realmente relevantes numa ilha permanentemente povoada pela chegada de novos escravos. Uma vez que a esperança de vida era limitada, as configurações das famílias de escravos assumiam formas particulares.
A frequente morte de um dos membros do casal dava azo por vezes ao reconhecimento de filhos não-biológicos ou nascidos de novas uniões , de modo semelhante àquilo a que hoje chamamos famílias mistas. Isto é válido tanto para o período da escravatura como para os anos após 1848.
São raras as fontes fiáveis sobre a vida quotidiana das famílias escravas. Há muitas variações: vivendo juntos ou separadamente, horários das refeições de acordo com as exigências do trabalho e das tarefas domésticas, cuidados a crianças com menos de 7 anos de idade, quer a cargo da mãe em pequenas ou médias propriedades, quer de uma pessoa idosa em grandes propriedades.
Por outro lado, a doença, a fome e a morte faziam parte da vida quotidiana das famílias escravas. Vários testemunhos atestam laços familiares muito fortes no seio da população escrava.
Neste contexto, em 1844, o abade Liberman , declarou:“É muito raro que os negros não sejam fiéis às suas mulheres; estão muito atentos à moralidade dos filhos e são respeitados e estimados.”
Do mesmo modo, E. Vidal salienta que: “O negro, mesmo na sua rudeza primitiva, tem muito respeito pelos pais e familiares; apega-se fielmente à sua companheira, sem no entanto ser constrangido pelo jugo do casamento; ama os filhos com ternura encantadora. ”
Por outro lado, o conceito de família escrava foi também alvo de inúmeras críticas.
A título de exemplo, a seguinte afirmação proferida por V. Schoelcher : “A criança, uma espécie de cabeça de gado dotado de fala, pode ser separada da família a uma determinada idade, tal como o potro ou o bezerro.”
Em 1841, durante os debates sobre a abolição da escravatura, o procurador Barbaroux declarou que não havia qualquer problema:
“ em quebrar laços familiares que, aliás, não são bem compreendidos pelos escravos.”
Uma das razões avançadas pelos vários poderes para denegrir as formas de organização familiar dos escravos era a confusão, etnocêntrica, entre casamento religioso e família. Eles apontavam repetidamente para a aversão dos escravos às uniões controladas pela Igreja e organizadas pelos senhores. Na sua opinião, o concubinato era um crime contra o qual tinham o dever de lutar.
Em 1842, Schoelcher declarou:
Não se deve concluir […] que os negros das colónias vivem em absoluta promiscuidade, sem leis nem ordem. Eles não contraem matrimónio como os seus senhores, mas têm relacionamentos caracterizados pela fixidez das relações conjugais, às quais acrescem na maioria das vezes as obrigações do casamento.
As fontes relativas à visão dos próprios escravos, no tocante às relações no seio da família escrava, são muito raras. Os arquivos judiciários fornecem alguns testemunhos, contudo apresentam uma natureza específica. Por conseguinte, é difícil estabelecer suposições sobre as relações entre casais ou entre pais e filhos. Os casos de violência contra as mulheres parecem ser raros. Assim, o ciúme conduzia mais ao suicídio do que ao homicídio. As fugas de escravos, para encontrar um companheiro ou uma companheira eram frequentes. O furto de alimentos, a maioria das vezes para alimentar a família do escravo, era também uma ocorrência regular, refletindo a responsabilidade dos homens. A autoridade dos pais sobre os filhos era naturalmente oposta à autoridade do senhor sobre todos os seus escravos. As situações eram, indubitavelmente, diversas.
Não devemos ignorar aqueles que permaneceram sempre à margem da família escrava. Os excluídos da parentalidade eram essencialmente homens, amiúde africanos. Há muitas razões para esta exclusão. Em primeiro lugar, um desequilíbrio na proporção entre os sexos, a escolha de mulheres não-nativas que eram em grande parte exógenas em termos étnicos e davam claramente preferência aos escravos crioulos. As vítimas do tráfico de escravos eram as que mostravam mais dificuldades em ultrapassar a provação da escravatura. A sua “invisibilidade” reflete-se também no facto de terem sido identificadas na morte por um nome, sendo mesmo irrelevante o patronímico atribuído.
Um número tão elevado de famílias escravas deve levantar questões sobre o significado destas estruturas.
A terminologia tradicional de família nuclear ou alargada não se aplica. A família completa tornar-se-ia nuclear ou polinuclear a partir de 1848, porém a gestão do património subjacente ao conceito de família nuclear ou alargada é, na Reunião, desprovida de sentido durante muito tempo.
O substrato sobre o qual foi construída a sociedade da Reunião é altamente complexo. A diversidade de formas de organização familiar, de escolha de alianças, de fertilidade das mulheres e do número de filhos que tiveram, mas também as diferentes variáveis de organização das propriedades de acordo com a sua importância ou as escolhas morais dos senhores, é óbvia. Não obstante estas variáveis, a família escrava é real e incontornável. Não havia uma, mas várias famílias escravas. Estéreis ou prolíficas, monoparentais ou completas, agrupando duas, três ou quatro gerações, reunidas ou dispersas, reconhecidas ou escondidas, esta pluralidade de práticas confirma a existência singular da família escrava num sistema que, no entanto, a negava.
Há quem tenha visto nestas formas de organização familiar um sinal de submissão aos senhores ao serem reconhecidas pela Igreja. Isto não pode ser excluído para um certo número de escravos, porém o perfilhamento de crianças nascidas antes da união religiosa, aprovado pelo senhor anteriormente a 1848 mas muitas vezes validado somente após a abolição, mostra que, na maioria dos casos, se tratava apenas de um reconhecimento oficial, sem qualquer influência na constituição da família.
Devemos, portanto, considerar outro significado. Tomando como exemplo a família de Emilie, mãe de seis filhos em 1811, quatro dos quais foram decapitados, nomeadamente Elie, é de notar que ela esteve presa durante vários meses, sendo por isso apresentada como um símbolo de resistência à escravatura.
Estas dezenas de milhares de escravos que viveram dentro de estruturas familiares levam-nos a analisar o seu papel como uma das formas de resistência à escravatura, que foi certamente mais discreta do que o marronnage (fenómeno de fuga de escravos) ou a revolta, mas que permitiu aos escravos sobreviverem à sua condição e lançarem os alicerces da sociedade crioula na Reunião. Se sobreviveram e deixaram descendentes, é graças ao facto desses milhares de escravos terem resistido a fim de afirmarem a sua humanidade.