A escravatura

Condição e vida quotidiana do escravo

Mulheres escravizadas em Bourbon
Autor
Prosper EVE

Historiador
Universidade da Reunião


Mulheres escravizadas em Bourbon

No universo dos escravizados, os malgaxes constituíam o grupo dominante, pelo que deveria reinar a harmonia entre homens e mulheres, já que, de acordo com a mitologia malgaxe, a mulher é filha de Deus, de origem celeste, tendo o prestígio de ser capaz de influenciar e distribuir a fertilidade. Sendo igualmente fonte de vida, de poder e de força, deve ser respeitada. Durante o período em que a colónia era gerida pela Companhia Francesa das Índias Orientais, os grandes marronneurs  regressavam para levar as mulheres à força com vista a criar reinos sedentários e duradouros. Outra manifestação deste respeito das mulheres ocorreu durante a revolta de Saint-Leu, em inícios de novembro de 1811, quando um dos chefes da rebelião ordenou aos seus homens que não atacassem as mulheres dos colonos. O grupo das escravizadas na ilha de Bourbon/da Reunião apresenta alguns traços distintivos. Eram muito menos numerosas do que os homens. Paradoxalmente, este desequilíbrio tornou-as vítimas da violência associada ao sistema. Todavia, por meio das suas ações, contribuíram para a construção da sociedade reunionense e para o seu êxito económico.

Um grupo quase sempre em desvantagem numérica

O equilíbrio de género entre os escravizados era frágil. Em 1704, dos 311 homens escravizados, 68,8 % eram do sexo masculino e 31,2 % do sexo feminino. Em 1711, dos 370 homens escravizados, as proporções eram de 64,8 % e 35,2 %, respetivamente. Após a sua chegada em 1714, os lazaristas militaram para que os filhos dos escravizados nascessem em famílias unidas perante a Igreja. Para que isso fosse possível, os governantes e os senhores tinham de concordar em trazer para a colónia tantos homens como mulheres e assegurar que o equilíbrio dos sexos fosse respeitado em cada plantação. Esta política encontraria algum apoio aquando do lançamento da cultura do cafeeiro Moka, uma vez que as remessas continham um número ligeiramente superior de mulheres.

Em 1735, a discrepância entre os sexos parece diminuir. De um total de 7057 escravos, 54,2 % eram homens e 45,8 % mulheres. Porém, esse progresso foi temporário. Os missionários falharam na sua tentativa de criar uma sociedade ordenada e de reduzir as tensões entre os sexos no seio dos escravizados, devido à falta de uma verdadeira cooperação por parte daqueles que lucravam com o sistema. Foi certamente por essa razão que as mulheres escravizadas foram objeto de violência desde muito cedo, tanto por parte dos seus senhores como dos homens escravizados. Em vez de aumentar o seu preço e valor e, por conseguinte, o respeito, o facto de serem raras tornou-as presas demasiado procuradas e geralmente obtidas de modo violento.

Na segunda metade do século XVIII, o desequilíbrio acentuou-se. Nada mudaria até à abolição da escravatura.
Em 1826, dos 63 447 indivíduos privados de liberdade, 65 % eram homens e 35 % mulheres. Em 1836, os efeitos do tráfico de escravos são evidentes no crescimento global da população escrava. O facto da maioria dos escravos comercializados serem de sexo masculino durante o período do tráfico clandestino, afetou a população de escravos adultos, que passou a ser composta por dois homens para cada mulher. Das 69 296 pessoas escravizadas, 65 % eram homens e 35 % mulheres. Nas vésperas da abolição do sistema, houve uma ligeira recuperação. Em 1842, 65 915 pessoas eram escravizadas, sendo 62,6 % homens e 37,4 % mulheres. Em 1847, dos 60 260 escravizados, as proporções eram de 61,6 % e 38,4 %.

Vítimas de violência, consequência direta do desequilíbrio entre os sexos

As mulheres escravizadas eram sujeitas à dominação de um senhor, mas também, por consequência, à dos seus companheiros masculinos. Para escapar aos golpes dos seus senhores, as mulheres escravizadas podiam optar por se rebelar, conquistando ilegalmente a sua liberdade. Os tumultos entre escravos e escravas eram constantes. As escravas preferiam permanecer solteiras. Em primeiro lugar, porque deviam ter autorização do senhor para casar e a situação dos futuros cônjuges era complicada quando não pertenciam ao mesmo senhor. Em segundo lugar, como as mulheres eram escassas, quando viviam em concubinato não eram maltratadas, porque o companheiro receava ser abandonado. Contudo, quando se casavam, no dia do casamento o casal fazia um juramento de fidelidade, segundo o qual que quem traísse devia ser chicoteado na praça pública pela vítima. Assim, se o marido fosse traído optava por não bater na mulher em público, preferindo corrigi-la dentro da cubata, à porta fechada. Desta forma, evitava ser ridicularizado pelos seus companheiros de infortúnio. No entanto, o casamento nada mudava para os escravizados, independentemente do seu sexo, uma vez que continuavam a ser propriedade de um senhor que podia dispor dos seus súbditos como bem entendesse. Ao viver em concubinagem, a mulher escravizada recusava-se a submeter-se à dominação masculina. A escravatura enfraquece o ser humano a tal ponto que o homem escravizado, que não é melhor do que a mulher, pode ver na violência contra os mais fracos (mulheres e crianças) uma forma de imitar os dominadores, de se dar importância e de se fazer temer.

As escravas protagonistas da história económica e política da ilha

Como a agricultura era a base da economia da ilha Bourbon, a maioria das mulheres escravizadas trabalhava com a enxada, sendo as restantes domésticas. Quando a cultura do cafeeiro Moka foi imposta aos plantadores pela Companhia das Índias, algumas escravas foram afetadas ao fabrico de material para secar os grãos de café e de sacos de vacoa  para embalar o produto com vista à exportação, tornando-se assim mandares.

Quando a colónia se voltou para a produção industrial de açúcar, a proporção de mulheres escravas, que variara entre 31 % e 35 %, tornou-se ligeiramente inferior, sendo em média, 26,8 %, ou seja pouco mais de um quarto da população total. A estratégia da produtividade favorecia a compra de homens. A situação mudou ligeiramente a partir de 1836, com a proporção a atingir os 30 %. Durante este período, alguns produtores de açúcar (30 em 48) compraram mais mulheres (+45,6 %) do que homens (+22,3 %). Para 28 destas refinarias, a proporção de homens e mulheres alterou-se devido ao aumento do preço dos escravos, à diminuição do capital investido na compra de maquinaria e ao custo inferior das mulheres. As mulheres eram raramente empregadas na refinaria, sendo de um modo geral, empregadas no tratamento da cana antes da mesma entrar na fábrica e dos sacos de açúcar para exportação.

O trabalho da ama não deve ser esquecido. Se a mulher do patrão não pudesse amamentar o filho recém-nascido, uma escrava poderia servir de ama-de-leite. Neste caso, criavam-se laços especiais entre o amamentado e a nutrice. No Atelier Colonial criado em 1771 durante a Monarquia de Julho, as amas-de-leite – ou seja, as escravizadas grávidas ou lactantes – foram objeto de debate. De acordo com o decreto de 12 de fevereiro de 1833, as mulheres negras eram consideradas amas-de-leite do sétimo mês de gravidez até ao sexto mês de amamentação. A partir do sétimo mês de gravidez, como o seu desempenho profissional já não era considerado bom, recebiam um tratamento especial para evitar acidentes e limitar os abortos espontâneos. A partir do sétimo mês de amamentação, as escravas tinham de regressar ao trabalho. Em 1833, esta oficina de amas-de-leite foi instalada no lazareto junto ao Cap Bernard e a supervisão foi confiada a uma escrava de confiança. Do sétimo ao nono mês, as amas-de-leite confecionavam panos, cestos, roupas de criança, calças, camisas, almofadas e remendos de lençóis hospitalares. As amas podiam ser disponibilizadas por um período de um ano às pessoas que o desejassem, mediante o pagamento de 30 francos por mês ao Tesouro Colonial .

No seio da nègrerie du Roi, algumas das mulheres escravizadas eram servas da marinha, enquanto outras trabalhavam no hospital ou no armazém.

No início da Restauração, a oficina de escravos da comuna de Saint-Denis era composta por 73 indivíduos, dos quais 35 homens, 21 mulheres, 10 negrinhos e 7 negrinhas. Das mulheres cuja profissão era conhecida, 10 trabalhavam no campo, a cafre Suzanne, de 27 anos, era empregada no governo e 6 eram amas. Em Saint-Paul, todas as mulheres eram operárias. Em Saint-Pierre, havia 27 mulheres na oficina comunal, entre as quais as cafres Euphémie, de 23 anos, epilética, Françoise, de 71 anos, Marie Joseph, de 54 anos, Marie, de 77 anos e Louise, de 59 anos, inválidas .

Durante o período revolucionário, havia algumas mulheres escravizadas sob a mira da justiça, quer por terem ligações com homens considerados suspeitos, quer porque os seus comentários indicavam que seriam anglófilas, facto que atesta que se interessam pela vida política. Acreditavam que a transição da ilha para o domínio inglês poderia significar a sua libertação. A 26 de fevereiro de 1800, Marie Anne foi acusada de ter afirmado que se regozijava com a chegada dos ingleses e de ter falado com Romain, um conspirador .

Os escravizados tinham apenas uma ambição: viver em liberdade. Os mais ponderados decidiam agir deslocando-se para a parte alta da ilha. Se fossem recapturados num prazo de 30 dias, ficavam sob a responsabilidade da justiça do senhor. Mas se fossem apanhados após 30 dias, ficavam sob a alçada da justiça real ou republicana. Da primeira vez, eram castigados com o corte das orelhas, uma marca de flor-de-lis num dos ombros e outros castigos corporais. Da segunda vez, era-lhes cortado o jarrete, marcados com a flor-de-lis no outro ombro e chicoteados e, da terceira vez, eram condenados à morte. As mulheres eram submetidas às mesmas penas que os homens. A 16 de junho de 1785, Marie, a escrava malgaxe de Sieur Ferrière, foi capturada após uma fuga de curta duração . Esta primeira tentativa falhada não bastou para a fazer mudar de ideias, tornando-se fugitiva profissional até à sua morte. Durante a época real, no terceiro caso, os escravos já não eram punidos com a morte. Esta pena foi comutada, após recurso, para prisão perpétua, sendo que Marie beneficiou desta alteração da legislação.

Para além das que participavam no marronnage, são poucas as mulheres escravizadas conhecidas. Podemos citar Fanny, libertada pouco antes da Revolução de 1789, mãe do poeta Auguste Lacaussade; Delphine nascida em Sainte-Marie a 7 de agosto de 1809, de apelido Hélod, libertada em 1835, costureira em Saint-Paul, falecida a 13 de maio de 1836 na mesma cidade; Cécilia, filha do escravo Janvier, falecida em Saint-Benoît com vinte anos; e Flore, escrava-ama da mulher e dos filhos de Patu de Rosemont em Rivière des Roches.

A tradição oral herdada dos marronneurs, conhecida pelos brancos que viveram nessa altura e registada por dois deles, Eugène Dayot e Auguste Vinson, permite-nos identificar várias mulheres. Os feitos dos grandes marronneurs vindos de Madagáscar mostram que se encontravam imersos na mitologia do seu país natal e que desejavam fazê-la perdurar. A partir da segunda metade do século XIX, os intelectuais puderam identificar o casal de marronneurs, Anchaingue  e Héva como figuras míticas. Para viver plenamente o seu amor, Héva superou-se a si própria, sacrificou-se, assumiu as suas responsabilidades e partiu com Anchaingue.

Anchaingue e Héva, estes dois defensores da liberdade, gastaram toda a sua energia a viver nos limites do seu eremitério e da sua solidão, estando confrontados com o mesmo drama e o mesmo desejo de recriação social. Viviam isolados, mas contentavam-se com o essencial: o entendimento. A generosidade da natureza fornecia-lhes água, alimentos e plantas medicinais. Subsistiam graças à jardinagem. Acima de tudo, eram livres de se deslocarem e de tomarem as suas próprias decisões. Não obstante o medo constante de serem recapturados por caçadores de escravos fugitivos, já não estavam sujeitos às pressões humanas repetitivas e insuportáveis da estrutura da plantação. O isolamento reforçou o seu amor. A salvação dependia da sua capacidade de definir e realizar projetos e de se ouvirem e compreenderem mutuamente. Tudo contribuiu para que fossem inseparáveis. Através da sua experiência de indivíduos que viviam ilegalmente em liberdade, transmitiam uma mensagem de monta, em primeiro lugar, sobre a necessidade de serem congruentes, não reproduzindo o modelo costeiro revulsivo, sem constantes ajustes de contas, e, em segundo lugar, sobre a responsabilidade e o espírito de união. Graças a eles, as montanhas passaram a ser a zona de salvaguarda da identidade primordial da ilha, ou seja, da harmonia, que exclui a violência e preconiza o perdão.

Na tradição marrone, a figura de La Marianne é original, pois faz a ligação entre as culturas ocidental e oriental, entre os ideais da república francesa defendidos por Lemarchand e a república instituída pelos Marrons.

No seu romance Sortilèges créoles, Eudora ou L’île Enchantée, Marguerite-Hélène Mahé, escritora do final do período colonial, narra que um destacamento de caçadores de marrons liderados pelo velho Caron , um sobrevivente da antiga equipa de Mussard-le Vieux , capturou Anchaingue  e os seus cinco filhos .

A figura chamada Kalla, popularizada sob o nome de Avó Kalle, está associada ao mundo natural e animal, ao mundo da noite, ao mundo da perdição. Ela é a «Besta Tou… tou… oute» e grita como o fouquet, o pássaro do mau presságio, arauto da morte. Kalla era uma pequena escrava africana presenteada pelo Sr. de Kérouet à sua filha Eudora, para a distrair após a partida do seu amigo de infância, o branco de classe baixa François Mussard. De companheira de brincadeira, Kalla tornou‑se «criada de habitação», deixando o campo para viver sob o mesmo teto que a sua senhora. Através dela, a cultura do quintal penetra na casa do senhor. A negrita Kalla e a senhorinha Sylvie aculturavam-se simultaneamente. Manteve-se fiel à senhora durante toda a sua vida, até pedindo a Deus a graça de poder avisar Eudora, após a sua morte, dos infortúnios que a ameaçam, bem como aos seus descendentes. Eudora revive a história da antepassada, Sylvie. Quando a sua senhora é sequestrada, por infortúnio, na sua vez, pelos seguidores de Zelindor, amante de Kalla, esta soa o alarme para que um destacamento de caçadores de marrons possa ir resgatá-la o mais rápido possível. Durante este ataque, Zelindor tenta matar François Mussard. Ferido por Eudora, ele foge, mas logo é capturado pelos caçadores, levado a tribunal e condenado à morte. Kalla aceita a pronúncia desta pena, mas fica muito preocupada com as consequências da tortura a que o cadáver de Zelindor seria submetido após a sua execução, porque como o ritual fúnebre dos escravos africanos não havia sido respeitado, ela sabia que ele seria privado da residência ancestral. Ela teme que o opróbrio dessa morte infame se reflita nos seus descendentes. A sua preocupação aumenta, e com razão, quando descobre que, antes de sua execução, Zelindor a amaldiçoou, gritando perante a multidão que ela havia «traído a raça», e pedindo aos seus homens para que o vingassem. Para tranquilizá-la, Eudora promete pedir missas para o repouso da alma daquele que ela amou para a eternidade. Kalla foi capturada pelos marrons que, de acordo com o desejo expresso pelo seu líder Zelindor, a lançaram do abismo de Entre-Deux. Gérard de Nadal, noivo de Eudora, que não era um modelo de fidelidade, enlouquece e suicida-se no mesmo sítio. Alguns interpretam essa coincidência como um sinal dos poderes malignos de Kalla. Para eles, neste lugar, os mortos apoderam-se dos vivos. A maldição de Zelindor dá frutos, Kalla pertence à categoria das almas condenadas. Eudora só tem uma ideia: enterrar Kalla para que sua alma não esteja condenada a vagar; esta ideia torna-se obsessão. François Mussard, que se especializou em espeleologia durante os seus estudos em França, foi responsável por explorar a gruta no sentido de verificar que os seus restos mortais ali estavam, conseguindo, desta forma, realizar o desejo de Eudora.

Mais do que a aventura de Kalla, é o resultado da difusão noutras camadas da população da conceção da alma veiculada pelos escravizados que é digno de interesse. Essa permeabilidade inesperada das mentes une o que o sistema económico atual divide; constrói pontes sobre as barreiras estabelecidas pelos costumes sociais e promove o reencontro.

Marguerite-Hélène Mahé também descreve um retrato sedutor de Rahariane, que se tornou esposa de Zelindor durante a sua fuga. É «de uma beleza fértil e selvagem. Alta, forte, graciosa, pisando o chão como que para lhe extrair a seiva. As pernas longas, os quadris volumosos, tudo parecia ser concebido para suportar o busto que se oferecia com perfeição na sua plenitude. O cabelo dividia-se em tranças finas, reluzindo com óleo de coco, e puxado para trás como uma crista, harmonizando a pequena cabeça com lábios cheios. O nariz reto e a pele pouco escura indicavam toda a distinção da raça Hova.» .

Enquanto as fontes escritas guardam os vestígios das poucas mulheres escravizadas que agitaram a ordem colonial, as fontes orais tiram do esquecimento aquelas que decidiram viver livres na clandestinidade, colocando as suas vidas em perigo e atestam que para as pessoas escravizadas a liberdade é um bem precioso inestimável.

Notas
1 N. da T.: Escravos fugitivos
2 N. da T. : folhas da planta Pandanus utilis
3 ADR, 16 K 13, Decreto de 30 de dezembro de 1833, p.314
4 ADR, 11 M 42, Saint-Pierre
5 ADR, L 325, Carta de 7 ventôse ano 8 (26 fevereiro 1800)
6 ADR, 37 C
7 O nome desta escrava foi deformado. Por questões de rítmica, Auguste Lacaussade utiliza Anchaine. Esta grafia foi retomada em finais do século XIX pelo médico Auguste Vinson. Eugène Dayot é o que mais se aproxima da realidade ao escrever Anchaing.
8 Trata-se de François Caron
9 François Mussard
10 Ela escreve Anching (Marguerite-Hélène Mahé, Sortilèges créoles, p.111)
11 Marguerite-Hélène Mahé, Sortilèges créoles, p.111
12 Marguerite-Hélène Mahé, Sortilèges créoles, Eudora ou l’île enchantée, p.158
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