A escravatura

Condição e vida quotidiana do escravo

Os escravos de confiança e os seus senhores em Bourbon no século XIX

Os escravos de confiança e os seus senhores em Bourbon no século XIX

A relação entre senhores e escravos era de tal forma antagónica, que pode parecer absurdo evocar uma relação de confiança entre essas pessoas totalmente opostas. A confiança pressupõe garantias e segurança mútuas. Uma pessoa de confiança é alguém em quem se pode confiar plenamente, porém a sociedade de plantação assentava na subjugação e na brutalidade.

Contudo, a massa servil não formava um todo uniforme e homogéneo. Os Negros ditos de picareta trabalhavam nos campos, ao passo que outros eram criados, cozinheiros ou palafreneiros. Durante a sua estadia em Bourbon (1827 – 1830), Jean Baptiste Louis Dumas pintou cenas do dia-a-dia. A aguarela intitulada «Négresse bonne d’enfants» (Negra ama de crianças) representa uma jovem escrava a costurar, sentada junto a duas crianças brancas adormecidas. O facto de serem representadas lado a lado sugere uma estreita afinidade entre essas pessoas. Ao estatuto jurídico do indivíduo escravizado, tal como definido no Code Noir, sobrepõem-se relações únicas.

Alguns testamentos, inventários pós-morte, conselhos de família e até documentos judiciais encontram-se permeados de informações que ilustram a realidade da relação de confiança entre senhores e pessoas escravizadas. Compreender essas relações, que podem parecer surpreendentes à primeira vista, e conhecer os seus fundamentos e amplitude, é uma tarefa interessante. Todavia, estas investigações apenas revelam o ponto de vista do dominador. Não dispomos da palavra do dominado, sendo que a sua pessoa apenas surge superficialmente.


Lebouq era um notável da cidade de Saint-Denis. Em 1792, mencionou dois dos seus escravos, Pierre Jean e Modeste, referindo expressamente a confiança que depositava neles.
«Reconhecendo em Pierre Jean muitas boas qualidades, em especial um carácter amável, nele deposita plena confiança e autoridade sobre todos os seus escravos»; «Estava convencido de que o seu capataz partilhava particularmente os seus interesses, que possuía também uma grande inteligência para a cultura, trabalhava com grande empenho e mantinha os seus escravos na maior docilidade.»
Quanto a Modeste, «a doçura do carácter e as várias qualidades desta Negra valeram-lhe o apreço do comparecente, que lhe concedeu a gestão da sua casa e o cuidado dos seus filhos.» As aptidões e virtudes destas duas pessoas fazem com que Lebouq delegue a uma delas a autoridade para gerir a sua propriedade e à outra, a gestão da sua casa e até dos seus filhos. Modeste não se dedicava apenas às tarefas domésticas; tecia igualmente relações com a família.

De facto, os laços de confiança podiam ser criados desde muito cedo, ser profundos e duradouros.

Grinne, jovem aluno, tinha uma relação epistolar com o tio. Nas suas cartas (1802-1803) escreveu: «Meu querido tio, felicito-o pelo feliz parto da minha nenin , que lhe deu uma grande menina»; «Transmita os meus votos de felicidade à grande nenin  e diga-lhes que os amo de todo o coração»; «Transmita à nenin e aos filhos os meus melhores votos e diga-lhes que continuam a ter toda a minha afeição».

Auguste Billiard, na sua obra Voyage aux colonies orientales (1822), confirma esta proximidade: «A ama recebe a sua parte das melhores iguarias da mesa do patrão; as Negras que foram criadas das crianças, as suas nénaines , para usar o termo local, são também objeto de uma atenção especial, já não têm consciência da sua escravatura; não passam de pensionistas da casa».

Na prática, as relações de confiança eram forjadas de várias formas.

  • Efetivamente, através de laços desde a primeira infância.

Marie Anne Thérèse Ombline Gonneau de Montbrun (1755-1846) perdeu a mãe no dia do seu nascimento. Filha única, foi criada por uma ama de leite, Madelaine. Aos 52 anos, no seu primeiro testamento, legava-lhe uma pensão de 50 piastras e 4000 milhos por ano, bem como uma Negra forte para a servir.

Em 1815, Henriette Macé declarou no seu testamento: «Em reconhecimento dos bons cuidados que recebi, desde a infância, de Margarida, minha ama e minha escrava, declaro que não quero que ela seja vendida após a minha morte, nem incluída nas partilhas juntamente com os meus outros escravos.»

No ano VI, os parentes dos três filhos menores do falecido Joseph Larcher deliberaram o seguinte. Três escravos estavam associados à sucessão. A malgaxe Zaïre, de 45 anos, cuidava das crianças. Desde a morte da cidadã Larcher, era ela que lhes servia de mãe. O seu bom comportamento, bem como o seu apego pelos menores de tenra idade, que ainda careciam dos seus cuidados, justificavam que ficasse junto das duas meninas, para dela cuidar. O falecido cidadão Larcher havia recomendado especialmente que não se vendesse o denominado Pierre crioulo, dado o seu grande apreço por esse escravo. Além disso, os seus serviços seriam necessários para Alexandre, um dos menores, enfermo e de saúde muito frágil, que requeria cuidados muito especiais. Os parentes e amigos manifestaram uma opinião unânime no sentido de que Zaïre era absolutamente necessária ao serviço e cuidado dos referidos menores. Era do interesse deles que não fosse vendida, tanto mais que esse era o desejo do pai, expresso muitas vezes na sua presença. Os escravos permaneceriam ao serviço dos menores cuja idade e saúde precária exigiam cuidados especiais.

  • Longe de temer atos maliciosos, vinganças vis ou ataques à pessoa do senhor ou da sua família, situações difíceis ou peculiares, certos momentos da vida proporcionavam o estabelecimento ou até o aprofundar de laços de confiança. Tal era o caso da doença, da velhice e até das situações de perigo.

Em 1792, Joseph de Sabadin, tenente-coronel de infantaria, recompensou alguns dos seus escravos que, por cinco ou seis anos, lhe prestaram cuidados constantes, dia e noite, durante o tempo em que esteve enfermo. Concedeu-lhes a liberdade, bem como aos seus familiares que perfaziam um total de treze pessoas. Os escravos seriam libertados após a morte da mulher, que contaria com a continuidade dos seus leais serviços.

Dachery Salicant, no ano XI, formulou que em reconhecimento pelos serviços prestados pelo crioulo Gabriel, de 57 anos, nomeadamente aquando às várias doenças de que sofrera, e por lhe ter salvo a vida numa circunstância perigosa, libertou‑o da escravatura, cedendo-lhe metade de um terreno onde o mesmo já estava estabelecido.

Em 1827, Augustin François Motais, de Narbonne, legou François Malgache, o seu mordomo, ao sobrinho Charles Motais, pois quando o levara para França, François cuidara especialmente bem dele durante a travessia.

Num testamento datado de 1835, Clermont Hoarau declara:
«Dou a liberdade à crioula de nome Célérine, de quase 40 anos, nossa criada, que sempre nos serviu lealmente e de mim bem cuidou durante várias doenças graves de que padeci. Dar-lhe-emos também algo para viver, bem como o crioulo Hyppolite, de 10 anos, que fará parte dos seus meios de subsistência. Dou a liberdade a Hilaire, um crioulo anão de 30 anos, que me serviu e cuidou bem de mim durante todo o tempo em que estive doente, e que serviu bem a sua antiga senhora. Dou a liberdade a Caroline, uma crioula de quase 25 anos, que sempre nos serviu bem e cuidou bem da sua senhora, estando junto a ela dia e noite durante os seus ataques de asma, que infelizmente se repetem. Dar-lhe-emos também algo para subsistir.»

Em 1846, o senhor Chrysante Bosse escreveu:
«Deixo a liberdade e uma porção de terra à minha negra Marie, crioula de 46 anos, como recompensa pelos seus bons serviços e pelos cuidados que dispensou à minha velhice, que ela ajudou a prolongar.»

Os laços de confiança também podiam ser forjados ao longo de várias gerações.

Os herdeiros da viúva Pierre Mussard chegaram a um acordo em 1821. O património da mãe incluía duas Negras, antigas e fiéis servidoras, de nome Euphrosine e Rozalie, ambas crioulas. Estas escravas eram de grande valor para eles, devido aos serviços que tinham prestado tanto aos seus antepassados como a eles próprios, não devendo ser avaliadas, partilhadas ou vendidas.

A senhora Marie Geneviève Goureau, viúva de Amalvain Euger, escrevia em 1840: «Como a minha escrava crioula Sélérine sempre se comportou como uma boa súbdita para comigo, para com o meu pobre marido e para com todos os nossos filhos, depois da minha morte, peço aos meus filhos que não a incluam na partilha nem a vendam, que lhe deem carta branca e a deixem ser dona das suas vontades, viver onde quiser. Esta é a minha recompensa pelos cuidados afetuosos e respeitosos que esta boa escrava nunca deixou de nos prestar a todos.»

Podemos suputar casos de concubinagem.

Em 1837, Dubuisson, proprietário de terras em Saint-Gilles, redigiu o seu testamento nos seguintes termos: «Dou e lego à menina Sidonie Frétigny, crioula que alforriei e que se tornou minha mulher de confiança, todos os bens de que sou proprietário nesta ilha Bourbon, móveis, objetos de uso doméstico e imóveis no momento da minha morte, para a recompensar justamente pelo seu trabalho, probidade e bons cuidado para comigo.»

Ilha Bourbon. Sua igual por um momento, escrava para sempre. Achille Devéria, 1838. Impressão.
Col. Biblioteca Nacional de França. Inv. OF-1-FOL (ÁFRICA-REUNIÃO

A lealdade é um dos fatores em que assentava a confiança.

Em 1818, Guillaume Antoine Desjardins recompensa especialmente três dos seus escravos. Trouxera da Índia para Bourbon Pèdre, com mais de 70 anos, e Pétronille, com mais de 65. Esses escravos mantiveram-se fiéis a ele e serviram-no bem durante muito tempo. Permitiu-lhes então escolher com quem terminariam a carreira após a sua morte e concedeu-lhes alguns subsídios para lhes proporcionar «algum conforto» e «alguma facilidade» na velhice. Do mesmo modo, a Léocadie, uma Negra crioula de cerca de 50 anos, que nascera em sua casa e fora criada pela falecida mãe de Desjardins, concedeu a liberdade pela forma como cuidara dele incansavelmente durante a sua infância, pelos cuidados que lhe prestara toda a vida, bem como pela sua assiduidade e pelo apego que lhe manifestara na sua velhice.

Os laços comprovados acomodavam por vezes verdadeiras qualidades profissionais. O senhor selava a formação do seu próprio filho numa forma de companheirismo.

Luísa Ticot, cujo nome de casada era Malbeste, possuía um escravo malabar chamado Bélizaire havia cerca de 20 anos e que lhe tinha prestado longos e bons serviços. Em 1810, decidiu que ele seria libertado no prazo de cinco anos após a sua morte, durante os quais trabalharia na sua ourivesaria com o filho mais velho, a quem recomendou especialmente Bélizaire.
Em alguns testamentos, é expressamente indicado que os escravos de confiança viveriam na casa do senhor.

Henriette Macé pediu a Advisse, o filho mais velho, que acolhesse Margarida em sua casa, que a alimentasse, alojasse, mantivesse e cuidasse dela enquanto ela vivesse, como ela própria faria se fosse viva.

Os herdeiros da viúva Pierre Mussard acordaram que Euphrosine e Rozalie escolheriam a pessoa com quem desejassem viver, pessoa essa que teria a obrigação de as acolher, alimentar, tratar e cuidar em caso de doença.

Do mesmo modo, em 1822, Gardye la Chapelle refere Paulin, que sempre fora um criado fiel e afetuoso. Este decidiria se ficava na família, escolhendo a pessoa com quem quisesse ficar, pessoa essa que seria obrigada a recebê-lo, «mas não como escravo, porque nunca esteve, positivamente, como tal na família; mas como um bom criado que nos serviu bem, que merece respeito, e além disso dar-lhe um pequeno salário, suficiente para a sua subsistência».

Noutros casos, não existem provas tangíveis, contudo há pouca margem para dúvidas. Os cuidados constantes dispensados aos membros da família, como por exemplo um bebé, implicavam necessariamente que a pessoa escravizada vivesse com o seu senhor ou a sua senhora. O senso comum apoia amplamente esta hipótese. Vários fatores apontam para a verosimilhança de que os escravos partilhavam o teto do senhor, pelo que a casa do proprietário não lhes era um espaço inacessível. É difícil imaginar, quanto mais não seja por razões práticas, que um escravo de confiança fosse obrigado a deixar a casa do proprietário para dormir ou mesmo comer na sua própria cubata, visto que era necessário mudar fraldas, alimentar, medicar, etc.

No entanto, nada sabemos sobre as disposições práticas. Durante os inventários pós-morte, os notários percorriam as divisões, nomeando-as, enumerando os objetos de uso pessoal, os lençóis, as roupas, as louças, abrindo as arcas, os armários, os baús, etc. Muitas vezes mencionavam as cabanas dos negros, as ajoupas, sem entrarem no seu interior. Registavam os lenços e os tecidos azuis que serviam para vestir os escravos. Porém isso era meramente factual. No inventário de Madame Desbassayns de 1846, o funcionário ministerial visitou os quartos, o salão, a varanda, a despensa, o escritório e a sala de jantar da mansão de Chaussée Royale. O mesmo sucedeu com a casa de Saint-Gilles. Em nenhum momento mencionou qualquer espaço ou divisão dedicada a um escravo doméstico. Não há qualquer referência a objetos, vestuário ou outras coisas que lhe possam ter pertencido. De facto, não se fala deles em nenhum inventário. O escravo dividia o quarto com um bebé ou uma pessoa doente? Retirava-se para um quarto contíguo? Na realidade, poder-se-ia argumentar que a questão não assume grande relevância, sendo certo que a coabitação, pelo menos ocasionalmente, continuava a ser uma realidade tangível, tal como a partilha de intimidade.


Esta confiança entre pessoas cujo estatuto jurídico era formalmente oposto é, como referimos, surpreendente à primeira vista. Continua a ser difícil compreender o seu funcionamento interno. Da parte do escravo, é impossível saber qual era o eventual papel da lisonja, da esperança de um destino melhor, da inveja dos outros. Ao mesmo tempo – e isto é complexo -, da resignação, da aceitação triste da sua condição, e até de uma certa alienação. As relações podem, por vezes, romper-se. Pierre Jean, o homem de confiança de Lebouq, acima mencionado, acabou por se revoltar contra o seu patrão, tendo a intenção de o assassinar, bem como à sua família, sendo por isso condenado à morte. A sinceridade também devia existir. Os laços que se teciam duradouramente, por vezes ao longo de várias gerações, como relatam muitos senhores, são disso testemunho.

Notas
1 N. da T. – A nenin era a ama da família.
2 N. da T. – Nénaine era o termo utilizado na ilha da Reunião para apelidar a ama da família.
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