«Será o esquecimento por alienação, ignorância ou
Jactância, a causa de feridas profundas por cicatrizar? »
(Edouard Glissant : « Tous les jours de mai », 2008)
Porque a uma distância de pelo menos três meses de navegação e dada a baixa proporção de súbditos dos reis de Bourbon entre a população local, é verdade que Versalhes elaborava as leis, porém não era capaz de as impor. Daí a criação crioula de um costume mais ou menos codificado. Assim, os missionários lazaristas possuíam o seu próprio costume . Os soldados dispunham das suas derrogações, tal como revelado pela inspeção da milícia «branca» por um oficial recém-desembarcado: «De entre os oficiais e fuzileiros, a quantidade daqueles que são contaminados com cor é tão considerável que não há forma de fazer uma triagem sem causar o maior cisma e o maior infortúnio nesta colónia.» . O recurso aos notários era muito comum mesmo entre os mais humildes. Tal como Claude Wanquet escreveu: «Em suma, a ilha foi invadida por processos. (…) Num tal clima, os homens da lei proliferaram desmesuradamente. ‘O número de notários multiplicou-se a um ponto indecente’».
Acima de tudo, os habitantes de Bourbon outorgaram-se a si próprios o direito de distinguir as cores: um direito dentro do direito, por assim dizer. É revelador o facto de o artigo V do Código Negro de 1723, que previa que as crianças nascidas de uma «concubinagem com escravos (…) fossem enviadas para o hospital local, sem nunca terem sido emancipadas» — artigo que não existia na versão de 1685 —, não ter sido aplicado. O mesmo vale para o artigo LI que proibia as doações dos Brancos a favor dos Livres.
Nesta sociedade baseada nas aparências estabeleceu-se um código de honra em que a hierarquia das cores não era contestada enquanto tal, contudo a sua aplicação era gerida pelos Crioulos . Eis alguns exemplos mais significativos:
– O caso das irmãs Ranga, três irmãs, três cores: Catarina era «Negra» porque era escravizada, Ana era «Livre de cor» e Marie era «Branca» por se ter casado com um tal de sieur Maillot .
– O caso da palavra «crioulo» no recenseamento de Denis Decottes em Sainte-Marie de 1780, em que esta mesma palavra abrange três condições: Branco, Livre («filha ilegítima alforriada») e escravo .
– A famosa receção de Bory de Saint-Vincent em Kerautray em 1801 em Saint-Joseph muitas vezes narrada :
Para a sua expedição ao vulcão, Bory de Saint-Vincent fez-se acompanhar por um carregador chamado Cochinard. Quando procurava uma refeição para a noite, um dos negros da expedição recomendou um «Branco Hospitaleiro» chamado Kerautray. Em seguida, perguntou a um «Mulato» se conhecia esse cavalheiro, ao que ele responde: «Mas sou eu! E convidou-os para sua casa. «Ao chegar, O Sr. Kerautrai disse à mulher, que se levantou assim que entrámos: Olha, minha cara, aqui te apresento uns brancos de passagem, ajuda-os a refrescarem-se, e dá-lhes o jantar.» De imediato nos ofereceram rum. Kerautrai ficou muito grato por termos brindado com ele e bebido à sua saúde. Mais tarde, puxou-me pela manga, levou-me para fora como se me fosse contar um grande segredo, e, apontando para Cochinard, perguntou-me se era branco, livre, ou negro? Embora Cochinard fosse apenas livre, e a sua cor fosse muito mais do que escura, respondi, sem hesitar, que era branco. Põe quatro pratos na mesa, gritou então Kerautrai para a sua esposa. De seguida, mandou os nossos negros descarregarem e comerem com os seus quatro escravos numa cubata situada a vinte passos da sua casa.
– E, finalmente, o relato de uma viagem realizada na década de 1840: «Quando observamos com alguma atenção a população escrava de Bourbon, reconhecemos com surpresa que é constituída não só por negros, mas também por malaios, bengalis, malabares e até brancos.»
Portanto, a uma negação seguiu-se outra negação. A primeira negação — a mais grave — é a da negação da humanidade dos escravos que eram «traficados» e que eram chamados de «peças da Índia». A segunda negação é a da cor para escapar à reificação. A língua crioula hesita em usar a palavra «ras» (raça), substituindo-a, na maioria das vezes pela palavra «nasyon» (nação). Porém, o facto de não se nomear a cor, fez com que fosse difícil combater o racismo, sendo que este se tornou profundamente enraizado na sociedade, tal como uma memória traumática imutável. «Mwin pa blan / Non mwin pa nwar / Tarz pa mwin si mon listwar» (Não sou branco, não sou preto, não mintam sobre a minha história) . Nesta sociedade clivada, o Crioulo tornou-se mestre na arte de julgar e identificar. Porém, quem é que dissimula e quem é que comanda? Compreende-se agora por que razão uma categoria social que, afinal, é pouco representativa do ponto de vista demográfico, económico e político, levante tantas interrogações atualmente. A genealogia do povoamento deve ainda ser escrita, para que as famílias possam reapropriar-se da sua história. Porque no mundo dantesco da escravidão há tesouros de humanidade que não temos o direito de deixar submersos na vergonha.
A única diferença entre os Códigos Negros de 1685 para as Antilhas e o de 1723 para as Mascarenhas reside no desejo de limitar o mais possível a categoria jurídica dos Livres de Cor. As autoridades esclavagistas tinham pressentido que este grupo poderia representar um perigo para a ordem pública. E, de facto, Toussaint Louverture, Delgrès, Bissette e Houat pertenceriam a esta classe. Em geral, os governadores do período real (e particularmente Bellecombe) foram muito parcimoniosos na concessão de alforrias, que só podiam ser outorgadas com a sua autorização.
Desforges Boucher é um caso à parte: começou na Reunião como lojista e, quando se tornou governador, construiu um castelo no Gol e alforriou doze dos seus escravos, incluindo um mordomo.
Assim, no final do período real, a percentagem de Livres de Cor entre todos os livres era muito baixa em comparação com as outras colónias francesas, ou seja, 11% do total dos livres em Bourbon contra 43% em São Domingos.
Durante o período revolucionário, a Assembleia colonial usou os Livres de Cor contra a ameaça abolicionista.
Os ingleses procederam a emancipações para formar um Regimento de Bourbon. Segundo Danielle Miloche-Baty, ascenderiam a 653, o que é um valor semelhante ao dos soldados mobilizados neste regimento (685 no total, incluindo 28 oficiais e 89 suboficiais) . Fizeram-nos marchar até Port-Louis a 4 de outubro de 1812, causando «alvoroço» entre os colonos maurícios .
Já a Restauração quase que estacou as alforrias.
A Monarquia de Julho tentou regularizar as situações mais chocantes, como as dos filhos ilegítimos, os chamados «livres de savana» ou ainda redenções graças a poupanças. O decreto real de 12 de julho de 1832 concedia um apelido ao alforriado que era então declarado no Registo Civil como «nascido». Os registos eram comuns aos Brancos e Livres. Louis-Philippe desejou normalizar as relações sociais e, de modo mais assertivo após 1840, preparar-se para a abolição geral.
A emancipação geral de 1848 decorreu de uma forma muito diferente na Martinica e na Reunião. Na Martinica os Livres de cor eram muito influentes. Se bem que Bissette tivesse sido expulso — apesar da sua legitimidade como abolicionista — Perrinon («homem de cor») foi nomeado comissário da República. Na reunião do Conselho Privado de 15 de junho de 1848, declarou: «Esperava-se que o novo livre pudesse entrar na sociedade nas mesmas condições aparentes que os cidadãos mais antigos (…). Os apelidos serão, portanto, atribuídos apenas com o consentimento individual de cada um e pelo cuidado de funcionários ou agentes credenciados em toda a colónia.» . Na Reunião ninguém foi às plantações para efetuar esses registos. Não obstante os desejos de Perrinon, não se propôs aos escravos que escolhessem um apelido para si mesmos; nem se tomou o tempo para estabelecer os registos, sucedendo por vezes que as pessoas votassem antes de o apelido ter sido oficializado. Aqui, as comissões eram presididas pelos grandes proprietários brancos que agiam com celeridade. Todavia, o dia 20 de dezembro veio pôr termo às aspirações dos proprietários que pretendiam marcar a sua influência sobre os «seus» alforriados.
O poder de nomeação fazia parte da política da cor. «De certa forma, podemos afirmar que com o seu apelido o indivíduo carrega a sua própria história e a das suas origens.» . Este poder foi exercido pelo senhor que o alforriou, assinalando a proximidade com ele ou com o mundo da plantação. De resto, o conservador do registo civil intervinha de uma forma mais ou menos arbitrária, disputando este poder com os proprietários. Quando recebiam um apelido por este meio, os homens livres passavam a ficar conhecidos como alforriados do senhor ou da senhora tal, ou ainda, de Sarda.
Até 1832, a pessoa alforriada mantinha o seu nome de batismo, caso tivesse recebido um, mas não tinha direito a um apelido. Contudo, tentaria apropriar-se de um. Os recenseamentos do Antigo Regime elucidam-nos sobre este assunto. Foram escritos pelos próprios proprietários ou pelos seus representantes e assinados pelos comandantes distritais. Eram levadas a cabo várias estratégias para «ganhar o apelido», sendo que a pessoa podia basear-se na sua propriedade e o seu ambiente imediato (portão, ponte, ravina, floresta…) para estabelecer um atributo de identidade. Porém, na maioria das vezes, tinha-se por base a família: o primeiro nome do pai tornava-se apelido, bem como o da mãe especialmente quando era ela que estava na origem da emancipação. É difícil escapar à preposição «de» que não dizia respeito a um nome nobre, mas indicava apenas aquele ou aquela a quem a pessoa devia o seu apelido.
Existe, no entanto, o caso excecional de Lislet Geoffroy que pôde usar o apelido do seu pai. Este último tinha deixado a Île de France para se instalar em Saint-Pierre, certamente porque, ali, a polícia racial era mais branda. Vivia com a sua princesa-escrava Niama arrancada ao Galam. Para que o seu filho nascesse livre, Jean-Baptiste Geoffroy alforriou a
mãe . Assegurou a educação do seu filho, a quem chamou Jean-Baptiste como ele. Quando as leis da Revolução lho permitiram, adotou «Jean Baptiste Lislet nascido a 23 de agosto de 1755, filho de Marie Geneviève Niaman» . Se a sua influência na Ilha Bourbon do século XIX foi limitada, o seu legado é hoje uma fonte de orgulho para o povo da Reunião.
A 23 de agosto de 1786, pelos seus trinta e um anos, foi eleito membro correspondente da Academia das Ciências de Paris, sendo o primeiro homem de cor a receber esta honra. O seu padrinho era o Duque de La Rochefoucauld-Liancourt, primo do Rei. A Academia das Ciências reconheceu o seu valor científico, claro, porém quis sobretudo destacar, através desta distinção, a sua fé nos novos valores transmitidos pela Enciclopédia. Este foi o início da luta pelos Direitos do Homem e do Cidadão e pela Abolição da escravatura. Lislet foi um símbolo para os círculos intelectuais progressistas, três anos antes do início da Revolução Francesa. Toda a sua vida Lislet trabalhou para elaborar mapas cada vez mais precisos, prosseguindo e completando o trabalho de Rochon e do abade de Lacaille em particular. Foi em grande parte responsável pelos contornos definitivos das Mascarenhas e a expedição à Baía de Sainte Luce que marca verdadeiramente o início da carreira de Jean-Baptiste Lislet como engenheiro geógrafo e cartógrafo: 1793, mapa das Seychelles; 1797, mapa das Ilha Bourbon e de île de France; 1814, mapa do nordeste de Madagáscar (publicado em Londres); 1819, mapa geral da Grande île.
Os Livres de cor marcaram muito menos a toponímia do que os marrons (escravos desertores) ou a nomenclatura urbana dominada pelos brancos, na medida das suas pegadas históricas. Um dos mais abastados descobriu uma fonte em Le Tampon que ostenta o seu nome. Reihlac possuía 84 escravos em 1848 em Saint-Pierre. Da família Lacaussade, também ela próspera, preferimos reter Auguste que nos deixou estes pequenos versos antes de partir:
Ó servidão dura! Ó destino! Ó leis cruéis!
Sob o jugo do homem, o homem assim se deve curvar
Ah! Longe destes quadros pungentes, abramos as nossas asas!
Fujamos, doce bengali! Fujamos para esquecer
(«Os trabalhadores», em Poèmes et paysages)
Quanto a Célimène, a «Musa de Trois Bassins» como pôde ela ser elevada a exemplo depois de ter dito que «o cavalo enobrece a mula»?
Devemos deduzir que nenhum destes «Livres» lutou contra a política da cor? Seria uma grande injustiça afirmá-lo. Em primeiro lugar, estas pessoas eram de longe as mais ativas no que toca a alforriar escravos: os homens livres de cor eram quatro vezes mais numerosos do que os homens brancos, e as mulheres livres de cor quinze vezes mais do que as mulheres brancas!
A realidade é que as autoridades coloniais criaram uma política da cor implacável. Desde a época de Mahé de La Bourdonnais, um Livre que capturasse ou matasse um escravo fugitivo, recebia um escravo como recompensa; um escravo que denunciasse uma conspiração (imaginária ou não) tornava-se Livre… e assim por diante. Os primeiros a erguer a cabeça nesta atmosfera de terror foram vítimas de uma repressão sem piedade. Durante as convulsões da Revolução Francesa, Jean-Jacques Ramalinga e Guillou Dubertin foram banidos, o primeiro sem julgamento, o último sem acusações comprovadas contra ele.
Depois, houve o caso de Furcy. Apoiado pelo seu direito de não ser mantido como escravo por Lory, e com o apoio de Sully Brunet, instaurou um processo contra o seu senhor que durou de 1817 a 1843. Houve ainda mais dois julgamentos em Bourbon em 1845. O que é revelador é que Lory teve receio, não obstante o apoio que recebeu do clã Desbassayns que era quem realmente governava a ilha na época. Preferiu enviar Furcy para a Maurícia para que este não se tornasse um exemplo para os outros, um líder capaz de provocar a mudança. Livre de facto na ilha irmã, Furcy exerceu a sua profissão de confeiteiro, capaz de enviar correspondência e pagar as custas judiciais necessárias.
A história de Timagène Houat é ainda mais instrutiva. História essa que permaneceu escondida durante um século, antes da reedição na Reunião do seu livro Les marrons, o primeiro romance da ilha, publicado inicialmente em Paris. Todavia, este livro é mais do que simples literatura, tendo sido o seu personagem principal o primeiro verdadeiro abolicionista de Reunião. Eis a história que gostamos de contar e que dá esperança à nossa ilha . Nascido em Bas de la Rivière Saint-Denis a 12 de agosto de 1809, Timagène manteve o seu nome africano. O pai, que tinha vindo de Port-Louis, trabalhava na instituição Ponts et Chaussées. Aos dezoito anos, Timagène pretendia abrir uma escola no seu distrito de La Rivière, contudo levou com uma recusa do diretor do Interior. «Em 1830, numa casa localizada na esquina da rua des Limites e da rua du Grand Chemin, Louis-Timagène Houat geria uma escola gratuita para todos os jovens da vizinhança e iniciou na música (guitarra ou violino) aqueles que para isso eram dotados .» Juntamente com Carlos de Sigoyer candidatou-se em 1834 a delegado de Bourbon em França. Em setembro de 1835 quis organizar uma manifestação na capital com o objetivo de exortar o governador a abolir a escravatura: «Vamos impor a nossa vontade pelo conjunto numeroso que somos e não julgo que isto constitua um crime contra os brancos.» Denunciada, esta manifestação não pôde ser realizada. Em vez disso, foi efetuado um julgamento contra uma pretensa conspiração. Eis o crime de Houat: trocar correspondência com Cyrille Bissette, receber o seu diário e lê-lo aos escravos em seu redor. Em 10 de setembro de 1835, Timagène foi detido em sigilo e condenado à deportação, a 3 de agosto de 1836, juntamente com outros três indivíduos. Além disso, três outros Livres foram condenados a cinco anos de prisão, quatro escravos à prisão perpétua e expulsos para a Île Sainte-Marie. Embora o rei Louis-Philippe lhe tivesse concedido o indulto a 18 de junho de 1837, o acórdão foi executado e Timagène foi enviado para Paris. O Tribunal de Cassação iria, no entanto, ilibá-lo desta sentença.
O trabalho genealógico que descreve as histórias familiares revela que as famílias de «1848» foram constantemente humilhadas e esmagadas nas suas tentativas de progredir. Tendo sido privadas da sua história, devem agora ter a possibilidade de a reconstruir. Todavia, também se viram obrigadas a entender que não é negando a sua ascendência e vitimando-se perante o senhor que poderiam recuperar a sua honra. Os seus antepassados não eram escravos, mas homens e mulheres, pura e simplesmente. A sua dignidade deve ser-lhes devolvida sempre que possível. A questão dos patronímicos e das atribuições de apelidos em espaços públicos e instituições é, portanto, de grande relevância. O departamento e os seus museus não podem esquivar esta questão: que nome dar ao único museu dedicado à história da escravatura da ilha?