Instituído nas ilhas de France (atualmente Maurícia) e Bourbon, em 1723, no início do reinado de Luís XV, o Code Noir2 é a expressão jurídica de um sistema económico e social dedicado, nomeadamente, à exploração de açúcar — um recurso agrícola considerado com grande potencial de desenvolvimento. A partir de 1455, segundo se investigou, os portugueses teriam instigado o nascimento de um sistema comercial autónomo na ilha de São Tomé «onde se celebra o “matrimónio” da cana e do homem negro e aparece o modelo conseguido de uma sociedade esclavagista»3 . Esse promissor sistema triangular passaria por sucessivas mudanças e deslocações geográficas no Brasil e nas Caraíbas, antes de ser aplicado no Oceano Índico.
No Oceano Índico, podemos dizer que representou também um «facto social total», tal como o explica Emile Durkheim, na medida em que comporta várias dimensões: económica, social, civil, política, religiosa e jurídica. Em França, por mais descurada que pudesse parecer, a análise dos textos jurídicos conheceu um notável impulso com figuras doutrinais contemporâneas, como as de Jean-François Niort ou Louis Sala-Mollins, respetivamente historiadores de direito e filosofia.
A análise jurídica é um meio que nos permite compreender o fenómeno da escravatura, dada a importância que revestia a regra do direito nas relações sociais. Vários estados modernos regulamentaram a escravatura4, testemunhando a mutação inicial do modelo económico e tendo como fundo comum a captação pela imposição da força de trabalho do escravo. Instituído em 1808 e revisto em 1825, o Código Civil do Luisiana explicita claramente esse elemento, distinguindo, no seu artigo 155.º, duas espécies de servos: os livres e os escravos5. Por definição, contudo, a escravatura é muito mais do que uma redução da pessoa à sua força de trabalho imposta por terceiros. Embora o trabalho forçado seja a sua expressão, a escravatura é mais essencialmente uma condição da pessoa reduzida a um objeto pelo intermédio e pela execução da regra do direito.
No seu sentido mais estrito, o Code Noir limita-se ao texto de 1723, conhecido pelo título Lettres Patentes6. No seu sentido mais lato, há que perceber as principais disposições jurídicas da escravatura no Oceano Índico que originaram este sistema de coisificação humana entre 1723 e 1848. A classificação atual distingue o Code Noir e o Nouveau Code Noir7 (CN e
NCN)8. A normatividade desses textos, componente da sua juridicidade ou qualidade vinculativa, será discutida antes de se considerar a linha de fundo das disposições. Historicamente, observamos quatro grandes etapas da legislação colonial em matéria de escravatura: o texto de 1723 organiza o domínio jurídico do senhor sobre o escravo; o Código Civil colonial de 1805 introduz a dualidade das liberdades mantendo, ao mesmo tempo, a escravatura; a legislação real da década de 1840 concede uma proteção acrescida do escravo e uma mediatização das suas relações com o senhor; operada pelo decreto de 27 de abril de 1848, a legislação posterior à abolição da escravatura indemniza o senhor despossuído. O Code Noir penal, que reserva um tratamento repressivo concreto e completa o Code Noir comum dá uma ideia da complexidade jurídica da escravatura.
A leitura do Code Noir e do Nouveau Code Noir permite perceber, sem sombra de dúvida, a natureza jurídica das suas disposições, seja a sua aptidão para regular de forma coerente as relações entre os senhores e os seus escravos, a sua capacidade de distinguir os destinatários dos direitos e obrigações, a sua preocupação de sancionar as violações desses direitos e obrigações. Não deixa dúvidas de que a intenção do legislador de 1723 consistia em organizar uma sociedade abertamente assente sobre considerações racistas, assegurando o domínio do homem branco sobre o homem negro, por meio da regra de direito. Quanto aos textos da Monarquia de Julho (1840-1848), se, por um lado, suavizam a condição jurídica do escravo, por outro, mantêm esta instituição jurídica. A evolução sensível do regime jurídico do escravo entre 1723 e 1840 caracteriza-se, nomeadamente, por uma tecnicidade e uma precisão crescentes, com tendência para subtrair o escravo à arbitrariedade do senhor. Esta vontade de subtração também se verificava no texto de 1723. Estes textos formam o que seria atualmente considerado direito de natureza positiva, ou seja, um direito em vigor num dado espaço territorial, a expressão de um ato de soberania do Estado. Por essa razão, além de indiscutível, o aspeto formal e tecnicista do direito da escravatura também será uma das expressões mais evidentes do fenómeno de antidireito, ou seja, um direito perverso e liberticida.
A legislação antijudeus do Estado nazi, tal como a do apartheid, também pode ser qualificada de antidireito9. Claro que não podemos comparar, sem a devida cautela, o estatuto dos Judeus ao dos escravos. Hannah Arendt, contudo, demonstrou que a retirada dos direitos comuns aos Judeus (direitos políticos, direito de propriedade) fora a primeira etapa da sua exclusão, que começara por ser jurídica e acabara no seu extermínio final10. As obras de Danièle Lochak sobre o direito de Vichy prolongaram a problemática do antidireito11, demonstrando, na melhor das hipóteses, a censurável indiferença da doutrina jurídica francesa relativamente à produção jurídica dos anos 1940-1944. Efetivamente, o direito e o seu comentário não são neutros. As pretensas ausências de cumplicidade e indiferença da doutrina positivista ao antidireito também são pouco convincentes12. Podemos referir a ideia de que «só o direito, que tem a capacidade de modelar a realidade de acordo com uma lógica a priori, era suscetível de criar este monstro»13, mas com uma reserva. Não é o direito em si que realiza a monstruosidade, mas a força política que a sustenta. O direito «contenta-se» em formalizá-la juridicamente, dando-lhe legitimidade. A análise jurídica contemporânea do Code Noir está sujeita a várias interpretações, opondo os defensores de uma inadmissibilidade radical àqueles que, apesar dela, pretendem fazer uma leitura jurídica de natureza científica14.
As Lettres Patentes (LP) não dão uma definição jurídica ao escravo, no sentido dos critérios de identificação iniciais15. De certa forma, podemos considerar friamente que existe uma falha de coerência no raciocínio do «jurislador» da época, uma vez que não se respeita a lógica jurídica: como atribuir um regime jurídico se não se sabe a quem ele deve aplicar-se… A qualidade do escravo, contudo, é reconhecida num determinado número de hipóteses acessórias.
Nem as Lettres Patentes, nem a legislação da Monarquia de Julho enunciam os critérios que definem o escravo. Em todo o caso, não existia uma disposição que definisse o escravo relativamente à sua aparência racial, ao contrário de como o direito sul-africano procedia na lei Population Registration Act, de 1950 (lei sobre a classificação da população)16. De acordo com o Code Noir, o homem negro não é forçosamente escravo: pode ser alforriado ou nascer livre. O texto é, portanto, simplesmente declarativo da condição do escravo, como se a questão de saber quem era ou não era escravo fosse evidente na época ou, pelo menos, não fosse uma necessidade jurídica. Como o Code procura assegurar o domínio do homem branco, o escravo é, a priori, negro, mas não podemos excluir o mestiço, originário de uniões mistas — e, claro está, proibidas17. Por fim, como o texto não prevê que uma pessoa considerada escrava possa ser alforriada por a sua tez ser branca, não podemos afastar a hipótese teórica de terem existido escravos brancos ou levemente mestiços. Na prática, os escravos eram recenseados, e a rúbrica «casta» descrevia a sua aparência. Alguns eram qualificados de cafres, malgaxes, crioulos ou vermelhos. Outros, eram classificados como «escuros-claros»… No seu todo, o Code Noir avalisa a condição jurídica do escravo sem a constituir. Num dado número de hipóteses, por exceção, as Lettres Patentes determinam a qualidade do escravo. Assim, o artigo V, dá duas séries de precisões. As crianças nascidas de uma união proibida serão sempre consideradas escravas sem possibilidade de alforria. Por outro lado, o homem negro, seja ele alforriado ou livre, que despose a sua escrava e a alforrie, tornará os seus filhos livres, nascidos ou por nascer. O artigo VIII, determina que os filhos de pais escravos nascerão igualmente escravos. Em virtude do artigo XI, a condição jurídica transmite-se de forma matrilinear. Uma mãe escrava põe no mundo filhos escravos e, por simetria, uma mãe livre, dá à luz filhos livres18.
Por exceção, o Código Civil do Luisiana de 1825 define o escravo pela sua condição: «O escravo é aquele que se encontra sob o poder de um senhor a quem pertence; de tal forma que o senhor pode vendê-lo e dispor da sua pessoa, do seu ofício e do seu trabalho, sem que ele possa fazer o que seja, possuir o que seja, ou adquirir o que seja; tudo pertence ao seu senhor» (artigo 35.º). Prova de que a escravatura permanece um desafio contemporâneo, a Convenção internacional sobre a Escravatura concluída em Genebra, a 25 de Setembro de 1926, define a escravatura como «o estado ou a condição de um indivíduo sobre o/a qual se exercem todos ou alguns atributos do direito de propriedade» (alínea 1 do artigo 1.º). Já o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, no caso Siliadin vs. França, de 26 de julho de 2005, teve de especificar as noções respeitantes ao trabalho forçado ou obrigatório, de servidão e de escravatura19.
Efetivamente, a escravatura consiste em desprover uma pessoa do seu livre-arbítrio para agir e em anular, tanto quanto possível, o seu livre-arbítrio para pensar, subordinando-a aos desejos exclusivos do seu senhor e dono, que faz dela um ser inferior. O facto odioso da escravatura ainda é mais grave quando assenta em considerações de ordem racial. O sistema jurídico não só admite por conta própria, em parte, essa realidade factual — uma vez que organiza, em prol do senhor, os meios desse domínio —, como também vai mais longe, utilizando a técnica jurídica para dissociar a pessoa dos seus direitos subjetivos. Por outras palavras, o escravo é uma pessoa sem direitos próprios e sem personalidade jurídica20. Uma das grandes vitórias dos filósofos do Século das Luzes foi a associação de direitos — reconhecidos como iguais — a todas pessoas. Para Kant, liberdade alguma, no sentido do livre-arbítrio do sujeito, poderia prevalecer sem a igualdade de
direitos21. Todavia, entre a proclamação de 1789 e 1848, levantar-se-iam muitos obstáculos para atrasar a instituição dessa nova ordem política nas colónias. No texto de 1723, por princípio e por essência, o escravo é um objeto de direito. Muito logicamente, não existe um estado civil para o escravo: o nascimento físico é dissociado da existência jurídica. É em 1848 que o comissário Sarda Garriga faz a união entre o real e o jurídico, tornando o estado civil universal22. Em 1948, ou seja, um século depois, a Declaração Universal dos Direitos Humanos faz dele um direito do homem por inteiro: «Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica.» (artigo 6.º).
O exercício dos direitos dos quais o escravo pode ser destinatário recai sobre o proprietário, que é quem lhos provê. Por exceção e testemunhando a sua escravidão, o escravo é um sujeito de direito. O artigo XLVIII do Code é muito significativo, pois assemelha, no caso específico da ausência do proprietário, a situação do escravo à de uma coisa a proteger por um proprietário substituto (depositário ou outro), encarregado de gerir a coisa como «bom pai de família» e responsável pelos prejuízos devidos a má gestão.
Para agravar essa «coisificação», o artigo XXXIX informa que o escravo é um bem móvel, ou seja, um objeto de direito: «Os escravos são reputados móveis». O particípio passado «reputado», aqui utilizado como «ser tomado por», significa que os autores do código estão perfeitamente conscientes da necessidade de recorrer à ficção jurídica como instrumento de construção do direito a partir do qual tudo o resto deriva (a condição jurídica). Muito utilizado como técnica jurídica, o recurso à ficção jurídica também significa que não existe qualquer prova factual de que uma pessoa deva ser considerada como bem móvel. É, então, graças a essa ficção totalmente jurídica que se institui a legalidade e a legitimidade da escravatura.
Excecionalmente, o escravo é considerado um imóvel, em caso de venda, do fundo ao qual está vinculado (artigos XLIII, XLIV e XLV). Segue-se um regime jurídico consecutivo de um certo rigor lógico. O escravo é submetido ao regime de direito comum dos bens móveis (Ordonnance et Coutume de Paris: artigo XL). O escravo pode ser vendido, mas a mulher, o marido e os filhos impúberes não podem ser separados (artigo XLII). Caso se veja privado do seu escravo e o denuncie, o senhor terá direito a uma indemnização (artigo XXXV). Objeto, não sujeito de direito, o escravo não pode ter propriedade sobre si próprio, nem sobre os seus filhos ou o seu trabalho, pois tudo isso pertence de jure ao seu senhor. Em virtude do artigo XXI, o escravo sofre de uma incapacidade de dispor do que seja e de uma incapacidade de usufruir de propriedade, o que é relativamente lógico, uma vez que se trata de prerrogativas jurídicas reconhecidas a um proprietário. Ele não pode ser considerado civilmente responsável por atos cometidos sob as ordens do seu senhor.
Em bom rigor, existe um regime de proteção do escravo. É um dos pontos centrais do debate doutrinal: será que podemos falar desse texto com tendo uma função de «intermediação» entre o senhor e a sua coisa, sem lhe dar, consequentemente, uma legitimidade retrospetiva? É uma proposta a ponderar, porque, na Reunião e nas Maurícias, ainda se ouve muito dizer que a escravatura não foi assim tão brutal, que os proprietários eram, na sua maioria, pobres e tinham de alugar os seus escravos para sobreviver. A proposta merece ser analisada com precaução e convida a aprofundar os estudos que, até agora, pouco avançaram no tema da dupla alienação — a do senhor e a do escravo — como efeito da política de desenvolvimento colonial do Estado real.
Seja qual for a sua amplitude, essas modalidades de proteção nunca transformam o escravo num sujeito de direito, limitando-se a recordar a sua qualidade de coisa específica de que convém cuidar, tal como convém cuidar de um animal ou de uma casa para sua conservação. Tanto assim é que o escravo é incapaz de reivindicar por si próprio os seus direitos: ele é um credor sem personalidade jurídica. Os seus direitos incluem, nomeadamente, a instrução religiosa (artigos I e seguintes) — mas será isso um direito ou uma obrigação, um meio de expandir o domínio da religião católica do Estado através do mundo? Também abrangem a obrigação de sustento na velhice, na doença ou noutra situação e a obrigação de pagar uma determinada soma ao hospital mais próximo (artigo XX). O repouso nos feriados é instaurado (artigo IV). Em todos os casos, esses direitos recaem sobre a diligência do senhor, contra o qual o escravo não pode depor (artigo XXII). O único recurso que se reconhece ao escravo é a faculdade de depositar a sua «memória» nas mãos do procurador, em caso de atentado à obrigação de sustento (artigo XIX). Esse procedimento consiste em informar o procurador, mas a força dessa informação é acessória, pois não pode, logicamente, equivaler a um depoimento. Por fim, o artigo XXXVIII prevê a repressão do senhor que tenha mutilado, ou, até, matado, o seu escravo. É claro que este poderá ser indultado, no fim de um processo simplificado.
A única parte do Code que reconhece o escravo como sujeito procura, na realidade, alicerçar a sua condição servil. Segundo o artigo XXV, em matéria criminal, ele pode ser alvo de um processo e sujeito às mesmas formalidades que qualquer pessoa livre. Já o casamento e a alforria dependem do senhor. Nessas condições, como podemos nós não concluir que se trata de uma norma jurídica desumana, que expressa relações de domínio caras à sociedade colonial?
Infelizmente, parece que pouco ou nada aprendemos com a história. É muito difícil aceitar que ainda hoje existam tantas figuras de exclusão. Mesmo as sociedades modernas que se vangloriam da sua tolerância — como a França, que tanto se gaba da sua experiência revolucionária fundada sobre a descoberta de um paradigma de universalidade dos direitos do homem — têm as suas contradições, os seus limites e os seus excluídos: os migrantes, os pobres, os portadores de deficiência… É verdade que as coisas evoluíram. A interdição geral, como uma proibição, é um dado adquirido. É o que faz a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: interdiz tanto a escravatura como o tratamento desumano e degradante. O estatuto do Tribunal Penal Internacional de 1998 incrimina a sua prática. Os códigos penais nacionais censuram e incriminam essas práticas. É verdade que a escravatura já não é legal; já não é admissível estabelecer que uma pessoa é legalmente o objeto ou o bem de outra.
Não devemos descurar o contributo da análise retrospetiva do Code Noir para melhor compreender a escravatura contemporânea cuja recorrência é manifesta e que assume formas idênticas, nomeadamente, na exploração sexual, na prostituição e na pornografia23. Estas formas que teríamos dificuldade em qualificar como novas24 são, apesar de tudo, facilitadas, não só pelas recorrentes práticas predatórias, mas também pela mundialização das trocas.