Desde logo, para suportar nas profundezas do seu ser o estado que lhes era negado, eles resistiram. Esta resistência apresentava duas faces, uma violenta – o marronnage (fuga pela terra), a evasão pelo mar ou a revolta – e a outra não−violenta, a canção, a recusa em procriar, a dança, os trocadilhos, o riso.
Durante muito tempo, a definição aceite por todos, vincula o termo marron à experiência dos espanhóis no mundo ameríndio. Victor Schoelcher cinge-se ao vocábulo «cimarron».
Para os medievalistas, esta palavra «cimarron», que na verdade significa «mato», não é adequada para designar o marron, o escravo que, ao fugir, rompeu com a sua condição, preferindo estabelecer um elo entre os termos comuns no século XIV: marron/marronniers: guias de montanha e carregadores do Alpes; marronnier: pirata e marronner: ser pirata; marron e latrone: ladrões. Os marrons foram a primeira geração de pioneiros e colonizadores em alguns lugares dos Alpes. A palavra marron é encontrada na língua Romana e, em seguida, na língua francesa para designar os animais domésticos que voltaram ao estado selvagem.
Os franceses que se estabeleceram em Bourbon nos séculos XVII e XVIII, utilizaram este termo para designar os animais vadios, daí as expressões de chat marron (gato vadio), cabri marron (cabra vadia), porc marron (porco vadio) que chegaram até nós e que foram alargados aos escravos que fugiam da propriedade do seu senhor, partindo para a montanha. Em 1997, o Dictionnaire du monde rural de Marcel Lachiver definiu a palavra marron da seguinte forma: animal doméstico que se tornou novamente selvagem.
O governador La Hure (1671-1674) foi um dos primeiros governadores autoritários e tirânicos. Segundo reza a lenda, mandou fuzilar e esquartejar Véron, o seu fiel de armazém. Para escapar à sua tirania, alguns escravos fugiram, entrincheirando-se no pico de Grande Anse. Eram designados kivis, palavra malgaxe que significa fugitivos. Em novembro de 1674, durante a visita do vice-rei da Índia, Jacob Blanquet de La Haye, mandou chamar os desertores. Jacques Launay dirigiu-se para a costa sul para soar o ancive (uma concha) e os fugitivos regressaram.
Na altura do governador de Orgeret (1674-1678), quando os Negros souberam que em Fort-Dauphin os malgaxes se tinham revoltado contra os franceses, em 27 de agosto de 1674, decidiram massacrar os Brancos exceto as mulheres, o cirurgião e o padre. Os detidos foram enforcados, enquanto os outros fugiram para as montanhas, fazendo incursões noturnas a propriedades isoladas. A principal preocupação do governador Vauboulon (1689-1690) era atormentar os proprietários. Neste sentido, mandou prender Brocus por dar cebola e alho a escravos fugitivos, condenando-o a pagar uma multa avultada, a usar uma placa no peito e outra nas costas com a inscrição «protetor de pretos fugitivos» e a ser amarrado ao pelourinho.
Os escravos fugiam porque desejavam recuperar a liberdade, não podendo das mostras de afeto a um ente querido, já não suportando serem brutalmente espancados e humilhados, insuficientemente alimentados, acusados de crimes não cometidos. Todavia, inicialmente, tratava-se de uma decisão eminentemente cultural. No navio que os levou a Bourbon, os escravos capturados em África e Madagáscar receavam morrer no mar pensando que as suas almas seriam assim condenadas à errância. Ao chegarem à ilha, tinham que superar outro medo, o de morrer longe dos ancestrais. Fugir para resolver a questão do túmulo ancestral era uma necessidade.
Quando se instalaram na parte montanhosa da ilha, os fugitivos malgaxes constituíram reinos, imitando o modelo político do seu país de origem. O líder era designado rei e a sua mulher, rainha. O rei era assistido por capitães e tenentes. Aquando da sua morte, o rei e os seus chefes militares mereciam um enterro sagrado, o culto que lhes era prestado ficando reconhecido para a posteridade, o que explica o seu peso na toponímia. Graças a estes túmulos ancestrais, as almas dos escravos falecidos na ilha deixavam de ser condenadas a vaguear. Os acampamentos e chefes que aparecem nos relatórios dos caçadores de fugitivos refletem um início de organização social que Jean Barassin descreveu como um Estado, Reino ou República. «Estado porque era um Estado dentro de um Estado, sem limites definidos, Reinos pois havia reis e República porque que o poder vinha do povo, sendo depositado nos mais poderosos».
Os escravos fugitivos nomeavam quase todos os pontos notáveis das montanhas da ilha: Salazes, Cilaos, Cimendef, Bénoum, Orère, Anchaing, Matouta. Dimitil que ocupava o cargo de capitão, reinou sobre uma vasta região que ia das terras altas de Saint-Paul até às de Saint-Pierre. Em 1752, o chefe do destacamento militar, François Mussard, soube da existência do rei Laverdure e da sua esposa, a rainha Sarlave. O seu tenente era Sarcemate. Em 1844, o viajante M.C. Lavollée menciona um cemitério numa das vertentes do Piton des Neiges onde escravos africanos enterravam as cabeças dos seus companheiros. Em 1846, uma câmara sepulcral cheia de ossadas foi assinalada no sopé dos picos Salazes.
Os escravos fugitivos foram os primeiros pioneiros das montanhas da ilha. Viviam em autarcia. Praticavam uma agricultura a pequena escala: principalmente milho, feijão, batata-doce, taros. Caçavam cabras e porcos selvagens, petréis, e pescavam nos rios. Dedicavam-se à recolha de mel, andettes (larvas que escavam as suas galerias nos troncos de árvores mortas) e frutos. Construíam minuciosamente cabanas feitas de madeira esquadriada ou redonda. Por vezes, contentavam-se com cubatas feitas de folhas chamadas «ajoupas», ou de «barracas». O acampamento era também composto por barracões. Alguns optavam por viver em cavernas a dois ou três. Os acampamentos fortificados por uma paliçada, guardados por sentinelas eram implantados em locais íngremes, inacessíveis e fáceis de vigiar. Alguns lugares eram rodeados de pedras que os fugitivos empurravam encosta abaixo sobre os atacantes, de modo a atrasar o seu avanço. No tocante a armas, inicialmente tinham algumas espingardas e pistolas roubadas durante as razias, mas por falta de pólvora estas tornavam-se rapidamente inutilizáveis. Tinha, então, que satisfazer-se com as suas azagaias, pelo que o resultado da luta só podia ser-lhes desfavorável. Os que sonhavam em deixar a ilha pelo mar, fabricavam pirogas ou jangadas no topo das montanhas, até mesmo uma chalupa. A vida era difícil para aqueles que não eram auxiliados por fugitivos aguerridos.
Erigiam o seu acampamento composto por vários tipos de cabanas («ajoupas», «hangares»). Plantavam e testavam plantas medicinais. As mulheres fabricavam as roupas, porque os chefes usavam os sinais distintivos dos países de origem. Samson, o chefe de Sakalave, estava «envolto numa vasta tela branca debruada a vermelho brilhante a que os malgaxes chamam «saimbou». A sua cabeça era encimada por um turbante de tecido adornado com um buquê de penas vermelhas e brancas». O fugitivo de base vestia-se com roupas usadas recuperadas durante as incursões a propriedades costeiras. As mulheres confecionavam roupas quentes com penas de aves usadas por todos os marrons. Trocavam de identidade e bebiam no cálice da sua cultura ancestral. Em fevereiro de 1801, um escravo fugitivo capturado ouve falar da existência de um campo de quinze a dezasseis marrons nas terras altas de Saint-Denis. Os líderes destes fugitivos, Bastien, André e Marie−Louise pertencentes a Ozoux, Valentin e Ferrière, autodenominavam-se «Jacob (nome do governador), Saint-Perne (como o gestor orçamental) e Madame Jacob»: assim se divertiam. De acordo com uma tradição oral relatada por J-M Mac Auliffe, o local de îlet à Cordes teria sido perdido pelos marrons durante um agape organizado por ocasião de um casamento. Informado por Fanor, um marron malgaxe, um destacamento de 25 homens deu o assalto. Apanhados desprevenidos, os fugitivos foram amarrados sem a menor resistência. Por fim, também esculpiam.
Quando não era ajudado por fugitivos experientes, a jovem marron podia morrer de fome, sede, fadiga, frio ou uma queda num precipício. Morria sozinho sem ter direito a uma sepultura. Aqueles que por serem mal alimentados pelos seus senhores tinham uma saúde frágil, um organismo fraco, tinham poucas hipóteses de sobreviver na sua vida como fugitivo.
Em 20 de dezembro de 1747, Marie Louise e Vao fugiram. Três dias depois, Vao adoeceu, falecendo no dia seguinte. Em 23 de março de 1778, um escravo guardião em Saint-Leu descobriu uma escrava vinda de Saint-Paul. No dia seguinte, vários escravos receberam a instrução para levá-la para a prisão de Saint-Paul. Pelo caminho pediu permissão para descansar. Sentou-se e faleceu. Em 1804, vinte malgaxes escaparam aquando do seu desembarque, subiram o rio des Galets e instalaram-se no topo de um rochedo. Alimentaram-se de fanjan (fetos arbóreos), porque os rebentos desta planta contêm uma polpa tenra e farinhosa. Os antigos marrons que voltavam à submissão eram por vezes utilizados como guias para os visitantes da ilha. O erudita Bory de Saint-Vincent foi acompanhado por Philippe, um antigo fugitivo preto, na sua visita à extremidade do Brûlé de Saint-Paul. O escravo que decidisse regressar após alguns dias de fuga recorria ao padre, ou a uma pessoa conhecida pela sua bondade, ou, por vezes, ao governador, pedindo-lhes que intercedessem por ele junto ao seu senhor para que este não o punisse severamente.
A inexistência de ferramentas agrárias (podadeiras, sachos, enxadas), ferramentas de carpinteiro (martelo, machado, serra, enxó, plaina, guilherme, cinzel, compasso e ferramentas de medição) para organizar as suas vidas, trabalhar a terra para se alimentarem e construir as cubatas e os móveis; a falta também de utensílios de cozinha (garfo, colher, copo, jarro), roupas para se proteger do frio; obrigavam-nos inevitavelmente a irem para o litoral. Como não eram bem-vindos, a recuperação de ferramentas, utensílios de cozinha e armas, dificilmente era possível sem astúcia e violência. Estas razias eram temidas, sendo que os grandes ataques dos marrons ocorreram entre 1730 e 1750.
Cronologia (não exaustiva) das investidas dos «marrons» de 1735 a 1775
Ano | Número | Lugares |
1735 | 3 | 2 em Saint-Paul 1 em Saint-Pierre |
1737 | 1 | Saint-Leu |
1738 | 4 | 3 em Saint-Paul 1 em Saint-Pierre |
1742 | 1 | Saint-Benoît |
1743 | 3 | 1 em Bras-Panon 1 em Saint-Denis 1 em Saint-Paul |
1747 | 1 | Grande-Chaloupe |
1750 | 2 | 1 nas terras altas de Sainte-Marie 1 nas terras altas de Saint-Paul |
1752 | 1 | Sainte-Marie |
1758 | 1 | Rivière-des-Pluies |
1759 | 1 | Rivière-des-Pluies |
1764 | 1 | Saint-Denis |
1765 | 1 | Saint-Paul |
1766 | 1 | Saint-Paul |
1775 | 1 | Grande Ravine |
Os chefes superavam os outros nestes exercícios. A partir de 1744, François Mussard realizou as suas grandes incursões durante dez anos no circo de Cilaos, que era então o centro nevrálgico do marronnage. Em 1751, matou Mafac e a mulher Rahariane. Mafac ou Mafate tem a sua relevância histórica (do malgaxe mahafaka, que cura – não só a partir de plantas mas também de água sulfurosa (Ran Mafaque). Esta história não é fruto da imaginação dos contadores de histórias. O espaço de Bourbon foi domesticado e sacralizado pelos ombiasy (curandeiros tradicionais malgaxes). A distribuição de topónimos no circo está ligada à tradição política malgaxe. O mapa astrológico malgaxe sobrepôs-se ao perímetro deste circo. O Norte (de Cap Noir até ao Cimendef) e o Leste (do Cimendef a Marla) são as zonas de bons augúrios e o Sul (até Trois Roches) e o Oeste (até ao ponto mais a sul ao longo do Maido) as zonas de maus presságios. Quanto aos quatro cantos: o Nordeste ou destino Alahamady é a posição do poder soberano, o ponto mais poderoso (Cimendef); o canto Sudeste ou destino Asorotany, é a posição do poder sagrado, o canto dos ancestrais com os túmulos e os monumentos funerários (os Trois Salazes); o canto sudoeste ou destino Adimisana, é a posição nefasta dos feiticeiros; e o canto noroeste ou destino Adijady, a posição do profano. Segundo a tradição oral, François Mussard não erradicou o marronnage em Cilaos (do malgaxe tsi ilaoza (na), o lugar do qual não se parte).
A última grande luta contra os marrons teria ocorrido por volta de 1829 em Îlette à Malheur acima da rampa Ferrand, onde viviam cerca de quarenta escravos fugitivos. Para alcançá-lo, era necessário escalar uma encosta quase vertical e passar sobre um tronco de árvore lançado sobre um precipício. A luta foi difícil. O destacamento liderado por Léonard Guichard perdeu dois homens, tendo vinte e cinco marrons sido mortos. Os restantes feridos foram feitos prisioneiros. Em 1849, os túmulos das vítimas ainda eram visíveis.
A expressão «Guerra dos Cem Anos», cunhada por Victor Mac-Auliffe para descrever esta caça ao homem, não é apropriada. Embora o estado de espírito entre os proprietários e os escravos fugitivos fosse bélico, a luta não era levada a cabo sob a forma de uma guerra. Os fugitivos não tinham a possibilidade de definir uma estratégia e uma tática face aos Brancos numa batalha campal e com tantos meios materiais como eles. Ao invés, sofriam ataques surpresa durante os quais eram esmagados ou neutralizados sem terem a possibilidade de travar um combate equitativo, nem de retaliar contra os seus adversários. As armas eram desiguais. Os Brancos possuíam espingardas, os escravos têm apenas azagaias.
Tampouco era uma guerra civil resultado de um Estado defeituoso, de um Estado fraco. Portanto, na Ilha Bourbon, foi o governador que impulsionou a luta contra os escravos fugitivos, usando a força para restaurar a ordem. Os caçadores de escravos agiam a mando de um Estado forte. Numa guerra civil, deixa de haver distinção entre combatentes e não combatentes. Na caça aos marrons, esta distinção torna-se evidente. Além disso, de ambos os lados, nem todos os membros ambicionavam alcançar uma vitória. Os ataques por parte dos escravos fugitivos eram limitados no espaço e no tempo, como uma espécie de guerrilha precursora, visto que o inimigo se sentia ameaçado em todo o lado, estando o seu estado de espírito desgastado pela intimidação e pela invisibilidade dos combatentes. Quando a guerrilha não logra vencer, ao longo do tempo o objetivo consiste em constituir um corpo de batalha suficientemente poderoso para realizar grandes operações decisivas. Porém, as incursões dos marrons não usufruíam desta configuração.
Os dados estatísticos confirmam a raridade das razias após 1748 reveladas pela tradição oral. Os velhos Malgaxes sossegaram; deixaram de acreditar na eficácia das incursões, tendo chegado a vez dos Africanos de apoiarem esta solução. As investidas dos marrons eram muitas vezes consequência dos excessos dos caçadores, que vasculhavam o acampamento e levam tudo com eles, matando os cães que soavam o alarme. Em junho de 1753, os homens do destacamento de Patrice Droman mataram trinta e um cães durante o ataque a um acampamento em Bras de la Plaine. Ao se limitarem a atacar as propriedades, sem atacarem os símbolos do poder decisório, os marrons não se muniam dos meios necessários para derrotar o inimigo. Como tampouco dispunham do apoio dos escravos das propriedades, a perspetiva destes ataques podia gerar um verdadeiro temor entre os senhores, sem no entanto abalar o sistema.
Mahé de La Bourdonnais (1735-1746) organizou operações «relâmpago», optando pelas táticas das grandes batidas. Contudo, os resultados não foram muito encorajadores. Em 20 de março de 1739, nove destacamentos, incluindo um da Rivière des Remparts, dois da Rivière d’Abord, um de Sainte-Suzanne, três de Saint-Paul, e dois de Saint-Denis, reuniram-se na Plaine des Cafres, nos arredores de Piton de Villers com vista a aniquilar os acampamentos de escravos fugitivos. Alertados pelos cães, os marrons fugiram, pelo que os destacados se depararam com 36 cubatas vazias. Optou de seguida então pela intimidação, uma operação levada a cabo por pequenos grupos de uma dúzia de homens cada, todos habilidosos no tiro, sob a autoridade de um chefe incontestável. .
A caça requeria excelentes capacidades físicas para superar os obstáculos do terreno, da destreza ao tiro. De acordo com Eugène Dayot, tal missão não podia ser realizada sem um mínimo de treino, mencionando duas modalidades: a loterie (um exercício de tiro) e a grimpe (um exercício de escalada). A escalada dividia-se em duas submodalidades: a grimpe sèche (escalada simples), imitando a caça aos petréis, que consiste em subir ao cimo de uma árvore graças a dois grampos; e a grimpe chargée (escalada com pesos) que simula a caça aos cabritos ou aos Negros, consistindo em subir e descer a mesma árvore com um peso de 30 quilos.
Fugir pelo mar, à noite, na perspetiva de uma minoria de escravos, era a melhor solução para se afastarem o mais possível dos esclavagistas, tornando-se livres novamente. Numa carta endereçada ao seu amigo Bertin, a 19 de janeiro de 1775, o poeta Parny, referindo-se este tipo de resistência, escreveu o seguinte: «A sua pátria (Madagáscar) fica a duzentas léguas daqui. No entanto, imaginam ouvir o canto dos galos e reconhecer o fumo dos cachimbos dos seus camaradas. Ocasionalmente, fogem em grupos de doze ou quinze, roubando uma piroga que abandonam ao sabor das ondas. Deixam quase sempre a vida nesta empreitada, o que é coisa pouca, quando se perdeu a liberdade.» Fugir pelo mar preocupa o poder civil e os senhores, não por causa do seu poder desestabilizador, mas pelas perdas que causa aos proprietários. A colónia viu-se confrontada com este problema já em 1704. O Conselho Superior punia de forma exemplar aqueles que eram apanhados em plena execução do seu plano, a fim de desencorajar os demais escravos a cometerem este delito funesto. Embora estas iniciativas fossem bastante raras, desde 1750 até às vésperas do período revolucionário em Bourbon, os projetos, esses, não faltaram.
Os escravos tinham apenas uma aspiração: viver em liberdade. Em Bourbon, enquanto alguns tentavam fugir da ilha por mar, outros fugiam da tirania da propriedade para se refugiarem no interior da ilha. A revolta era uma forma de resistência muito mais radical. De 1705 até ao Primeiro Império, todas as tentativas de revolta para conquistar a liberdade através da força fracassaram, porque eram denunciadas por alguém de dentro. Em 1705, em Saint-Paul, Sébastien, escravo de Pierre Léger; Samban, escravo de Jacques Delâtre; e Mathieu escravo de Pierre Bachelier foram condenados a serem queimados vivos, por terem pretendido assassinar todos os Brancos para se tornarem senhores das armas e da ilha. No mesmo distrito, no dia 1 de junho de 1719, Louis Ponnant, escravo de Antoine Cadet foi condenado à forca pelo crime de rebelião. Entre fevereiro e maio de 1730, Claude, Simayet, Cambon e François primeiro; Barbe, Sébastien e Jacques depois, passaram pelo tormento da roda antes de serem estrangulados e expostos em praça pública por terem planeado matar os seus senhores e todos os Brancos sem exceção.
Os administradores da época real (1767-1789) não levaram a sério os planos de conspiração infundados. O representante do rei Louis XV na colónia, Bellecombe, estava convencido disso em relação aos tumultos de 1769, e admitiu prontamente que a suposta revolta de 1779 «não passava de uma questão de terror, tendo os proprietários acrescentado um ponto à história», sendo que os escravos culpados queriam somente roubar, ou talvez atear fogo a uma ou outra cabana ou galinheiro; um escravo guardião foi esfaqueado simplesmente porque se opôs a um ladrão de cana-de-açúcar. O projeto de conluio denunciado era, na sua opinião, lamentável, já que os supostos líderes tinham como armas apenas um pedaço de baioneta partida e algumas lanças . Não obstante, a repressão foi terrível . produzindo os efeitos desejados, visto que durante os últimos dez anos do Ancien Régime, não houve mais vestígios de revolta servil. O único episódio perturbador eclodiu em outubro de 1788 em Saint-Louis, aquando da evasão de uma centena de escravos da propriedade de Grimaud . Dez anos depois, os atos daqueles que eram tidos como inimigos do interior não foram relativizados. Neste contexto, em outubro de 1799, em Sainte-Rose, de acordo com as confidências feitas pelo escravo malgaxe Adonis ao seu senhor, Levillan-Desrabines, quase quinhentos escravos planeavam ir a Saint-Denis para adormecer ou levar à loucura, por meio de uma espécie de raiz, todos os brancos reunidos no teatro.
Sob o Império, o receio de um ataque inglês levou os proprietários a deixarem de negligenciar a sua segurança. Os ingleses decidiram desarmá-los com o intuito de torná-los inofensivos e evitar gestos hostis após o juramento de lealdade. Consequentemente, os proprietários encontravam-se impotentes perante a ameaça que os escravos representavam, não por aqueles que fugiam para as montanhas, mas pelos que permaneciam nas propriedades.
Uma vez que os revolucionários de 1789 não tinham instaurado a abolição da escravatura, durante a conquista da ilha em 1810 pelos ingleses, ao verem os colonos serem desarmados, os escravos julgavam que estes novos governantes seriam mais generosos do que os franceses. Quando compreenderam que a abolição da escravatura não estava na ordem do dia, os escravos da região do Gol e de Saint-Leu decidiram revoltar-se, em novembro de 1811. Pela primeira vez, um projeto seria executado. Para defender os seus interesses, os colonos desta localidade não esperaram pela chegada das forças inglesas. Organizaram-se entre eles, resolvendo tomar a situação nas suas próprias mãos. Cento e trinta e cinco rebeldes foram detidos e encarcerados em Saint-Denis, dos quais vinte e cinco foram condenados à morte pelos tribunais ingleses, pois a justiça era feita em nome do Rei de Inglaterra, George III. Em 1832, outra conspiração denunciada em Saint-Benoît, cujo líder nasceu na Maurícia, preocupou os governantes, porém não foi executada. A 7 de novembro de 1836, Guillaume e Augustin, os reveladores da última maquinação em Saint-André, receberam a liberdade e uma pensão anual de 360 francos.
Este tipo de resistência diz respeito a uma série de escravas, que, já que não conseguiam quebrar os grilhões, recusaram a responsabilidade de escravizar outro ser humano. A escrava casada limitava os seus nascimentos atrasando a conceção do primeiro filho. Na época real, Bellecombe e Crémont tentaram encorajar a fecundidade dos escravos através de gratificações. O seu projeto de conceder a emancipação a casais negros que teriam dado dez escravos aos seus senhores, ilustrava a sua vontade de lutar contra a resistência dos escravos, porém foi um plano falhado. O autor de uma dissertação sobre Bourbon em 1785, atribui o fracasso da política de natalidade principalmente ao seguinte facto: «A principal causa é que a maioria destas mulheres destrói os seu frutos não desejando dar à luz crianças tão infelizes quanto elas.» A situação não melhorou durante a Restauração quando o Estado decidiu abolir o tráfico de escravos em 1817, caso contrário, os habitantes não teriam recorrido ao contrabando de escravos antes de apelarem a trabalhadores importados munidos de um contrato de trabalho. A quantidade de famílias reconstituídas que surgiram aquando da abolição da escravatura não deve levar-nos a erigir o parto de crianças por mulheres escravas a um ato supremo de resistência.
O canto, a dança, a invenção de sirandanes (adivinhas), o riso são estratégias inventadas pelos escravos para emergir incólumes da noite da escravatura e não serem esmagados pelo stress provocado pelo sistema económico em vigor. Graças a estes artifícios, sentem-se livres e alheios às considerações da sociedade em que vivem.