Com efeito, não existe atualmente um centro de interpretação inteiramente dedicado à transmissão e valorização da história do maronage e à existência do Reino do Interior, que durou quase 185 anos, baseado numa organização social próxima da dos chefes malgaxes.
Na ilha da Reunião, o ano de 1998 ficou marcado pela celebração do 150º aniversário da abolição da escravatura. Esta comemoração permitiu, através de uma importante exposição temática designada «Regards croisés sur l’esclavage : La Réunion 1794-1848», apresentada no Museu Léon Dierx, em Saint-Denis, elaborar um estado de conhecimento e das fontes disponíveis sobre a história da escravatura e o tráfico de escravos na Reunião.
Este evento deu visibilidade a muitas fontes históricas. Para além dos textos, destacou a existência de uma iconografia considerável, bem como documentos cartográficos pouco explorados até à data, especialmente os anteriores a 1794. Além disso, estas festividades permitiram dar início a uma reflexão, muitas vezes apoiada pelo setor associativo, em torno da questão dos lugares de memória da escravatura. Em março de 2007, ao varrer a praia de Saint-Paul, o ciclone Gamede destruiu parte do muro envolvente do cemitério marinho, revelando a presença de restos humanos na praia. Os serviços estatais enviaram um arqueólogo para dirigir as escavações no local. A análise arqueológica caracteriza estes ossos como pertencentes a escravos, alguns dos quais «recém-chegados», tal como evidenciado pelo exame da dentição que teria sido alvo de práticas rituais como o corte na ponta dos incisivos e caninos. Apenas os recém-chegados escravizados, oriundos de populações africanas da costa e do interior do continente, apresentavam estes vestígios de alterações corporais e rituais que acabariam por desaparecer com a primeira geração de escravos nascidos na ilha, no contexto da sociedade esclavagista e segregacionista de Bourbon.
Esta revelação fortuita colocará o Escravo no centro da pesquisa da Reunião, descartando algumas ideias preconcebidas sobre as condições de vida dos escravos em Bourbon. Tal descoberta revela a necessidade de usar a arqueologia como outra fonte histórica para complementar e, por vezes, questionar o conhecimento sobre a história da escravatura e o tráfico de escravos no oceano Índico.
Estes dois acontecimentos, com um intervalo de dez anos entre eles, permitiram colocar a questão do maronage em perspetiva no contexto da história da escravatura na colónia. No passado recente, foram frequentemente favorecidas abordagens distintas, que separam a «investigação» do «terreno», em que os investigadores e atores da sociedade civil se limitam às prerrogativas das suas respetivas áreas, muito pouco ou nada interagindo. Atualmente, acreditamos que é necessário cruzar as duas abordagens e convocar outras áreas das ciências humanas, tais como a etnolinguística, a onomástica, a antropologia, a arqueologia, a literatura comparada, a oralidade, a genealogia e a cartografia antiga e contemporânea, que possibilitem acrescentar uma dimensão mais abrangente à interpretação do conhecimento do território e da sua história.
A investigação multidisciplinar levada a cabo de 2013 a 2016 pelo Serviço Regional de Inventário(SRI) da Reunião permite-nos agora dar respostas a questões por resolver, como a das condições da vida quotidiana dos Marons, os seus percursos e assentamentos no interior da ilha, bem como a sua organização social…
Para estudar o maronage é necessário conhecer o conjunto dos conhecimentos sobre este tema. Esta investigação documental e bibliográfica envolve também o conhecimento de todo o trabalho de investigação científica divulgado através de redes universitárias, de locais públicos tais como arquivos, bibliotecas, centros de documentação especializados e colecionadores privados. Identificámos igualmente trabalhos sobre o maronage explorando os campos da investigação histórica, da produção artística e do romance. No âmbito do estudo do maronage, esta abordagem permite elaborar um estado atual desta questão perspetivando noções importantes como os mitos. Pode-se assim observar a porosidade – ou a sua inexistência – entre a investigação e a produção literária, bem como a sua presença na produção literária e artística.
Na Reunião, os locais que acolhem e preservam a atual lista de conhecimentos documentais contêm cerca de 600 títulos de livros, artigos científicos, atas de colóquios, teses, dissertações, gravações sonoras e videográficas. Apenas 15% destes documentos se focalizam diretamente no maronage. Será que isto significa que o maronage é apenas um epifenómeno da escravatura, ou que os investigadores não encontraram material histórico suficiente para forjar as suas análises? Será que o assunto ainda é alvo de alguns tabus que convém não evocar?
Produzir conhecimento e atualizá-lo regularmente é um ato de cidadania que permite à sociedade melhor se definir coletivamente em relação à sua história e ao seu território. No entanto, este conhecimento não serve de nada se permanecer confidencial. É por essa razão que, desde 2016, o SRI oferece ao público a exposição « Maronages : Refuser l’esclavage à l’île Bourbon au XVIIIe siècle» composta por um curso de mediação cultural em cinco sequências.
Em 2013, iniciámos a investigação sobre o maronage através dos relatos de retorno de «destacamentos» da série C dos Arquivos Departamentais da Reunião (ADR). Uma vez que os relatórios são desiguais em termos de densidade da informação, pareceu-nos necessário ter um olhar crítico sobre os documentos – a fim de questionar o seu nível de precisão – construindo, ao mesmo tempo, um contexto necessário para a compreensão destes últimos. Neste sentido, optámos por explorar o personagem de François Mussard, com vista a situá-lo no seu contexto cultural, económico e político, já que os seus relatórios contém uma maior densidade de informação. O objetivo é aprofundar o estudo sobre o seu ambiente social, a fim de integrar na análise os outros documentos da série C que o mencionam (localização dos pedidos de concessões que permite compreender a sua apreensão do território, pagamentos na forma de escravos «peça da Índia» colocados nas propriedades). Loran Hoarau, que desenvolveu esta abordagem original, estabeleceu a genealogia de cada um dos membros que compunham os destacamentos, remontando até aos recém-chegados com base, em particular, no Dicionário Genealógico de Bourbon. Esta abordagem permitiu-lhe identificar os laços religiosos e cívicos que uniam os membros dos destacamentos, mas que não constam dos relatos de destacamentos. Os documentos do registo civil também fornecem detalhes sobre as ocupações e carreiras dos membros dos destacamentos. O método de Loran Hoarau proporciona uma leitura mais detalhada dos destacamentos e mecanismos que explicam a sua constituição, o seu funcionamento hierárquico, bem como a sua tremenda eficácia no campo.
Os relatórios de que dispomos abrangem um período de 26 anos. Por que razão foram escritos? De acordo com Loran Hoarau, que citou a expressão de Albert Lougnon «Para estimular o zelo dos habitantes de Bourbon», o conselho superior prometeu, por deliberação de 7 de setembro de 1740, conceder a crédito um escravo «peça da Índia» por cada fugitivo trazido de volta vivo ou morto. Foi provavelmente esta disposição que «gerou» a necessidade de escrever relatórios como base para justificar a reivindicação da recompensa. A informação era importante porque permitia à Companhia das Índias Orientais contabilizar os escravos. Este fenómeno provoca, portanto, o tráfico de escravos. Os relatórios permitem, assim, escrever um segundo documento resumindo o número de escravos oferecidos como recompensa aos membros dos destacamentos. Os relatórios começaram a ser redigidos em 1739 por Carron e continuaram em 1740 com o aparecimento de François Mussard que obteve o título de oficial da Burguesia (ou da milícia burguesa dependendo dos documentos).
Tendo em conta o período 1739-1765, a série é cronologicamente coerente. Provavelmente faltam elementos, porém a densidade é, apesar de tudo, elevada e o conjunto constitui uma base de informação muito rica.
Aprendemos que as ravinas são a porta de entrada para os espaços de maronage. Que os diferentes grupos de Marons espalhados pela ilha provêm principalmente do tráfico de escravos de Madagáscar. Apesar das diferenças culturais e linguísticas das pessoas escravizadas provenientes de diferentes comunidades de Madagáscar, todas partilham uma linguagem comum que lhes permite construir o projeto da sociedade Marone com uma organização política e militar que ameaça a colónia. Foi devido ao facto de que os Marons exerceram uma pressão militar constante e violenta apoiada pelo temível Tafika Mainty (Exército Negro ou Secreto) que o governador da época criou os «destacamentos de caçadores de escravos Marons» compostos por colonos visto que a colónia não possuía soldados para a sua defesa.
Este espaço interior, desconhecido para os colonos, é governado por um rei e uma rainha que reinam nas aldeias sob a autoridade de capitães e tenentes. O grande maronage (o marronage de longa duração) não é apenas uma forma de resistência. É também o projeto de criação de uma sociedade autónoma e independente, à margem da colónia, baseada em modelos ancestrais malgaxes. Em Bourbon, foi um projeto de revolução política e social que se organiza com vista a estabelecer um Estado livre: o Reino do Interior em oposição ao poder colonial oficial do litoral sob pressão militar de Marone. Assim, as incursões, meticulosamente preparadas pelos Marons, destinam-se a aterrorizar as populações da costa, saqueando a comida, os objetos e as ferramentas de que precisam. Também destroem as máquinas cujas partes dispersam e queimaram as habitações e as colheitas para prejudicar a economia da ilha, a fim de empurrar os colonos de volta para o mar e tomar posse da ilha. Trata-se de uma guerra que não diz abertamente o seu nome, mas que toma a forma de uma guerrilha constante: o medo e a violência prevalecem de ambos os lados.
A título de exemplo, o relatório de regresso do destacamento de François Mussard de 31 de outubro de 1751 menciona: No rio Saint-Etienne, «o lugar denominado Commencement L’islette à Corde (…) O dito Mussard perguntou ao dito Grégoire, que estava ferido, se havia nas proximidades vários outros marons e se estavam separados do seu grupo. Ele ter-lhes-ia respondido que havia dois acampamentos do outro lado do pequeno planalto, um dos quais era precisamente aquele que o destacamento tinha avistado e para onde se dirigiam quando se encontraram com esses três negros. Haveria 50 marons tanto negros como negras ou crianças e que no outro acampamento, que era mais pequeno e situado a uma légua acima do primeiro, haveria 10 marons tanto negros como negras e crianças.(…) Declara o dito Mussard que haveria no referido campo 30 cabanas feitas de toros de madeira, em algumas das quais viveriam, aparentemente, 3, 4 ou 6 negros, como foi relatado pelo supracitado Grégroire.(…) Graças à sua longa experiência, o dito Mussard sabia que os marons escondem os seus despojos nas cavernas e no chão, tendo ordenado aos negros que acompanhavam o destacamento que vasculhassem o dito acampamento e os arredores. Teriam encontrado numa pequena gruta duas espingardas em bom estado, carregadas com balas, e no buraco de uma árvore uma espingarda de dois canos com balas e cerca de três punhados de pólvora numa caixa, 11 panelas, de diferentes tamanhos, vários machados e podadeiras em forma de picareta» .
Destacamento: François Grosset, Antoine Mussard, Gaspard Lautrec, Henry Hoareau, Sylvestre Grosset, Joseph Hoareau (pai), Jacques Hoareau filho de Noël, Louis Lauret, Antoine Cerveau, Claude Garnier.
Ao ler estes relatórios de regresso da «caça aos Grandes Marons» descobrimos que as aldeias de Marons são particularmente bem organizadas, sendo o lar de uma população de adultos e crianças nascidos livres em maronage, descritos como «crioulos da floresta», bem como alguns velhos. Alguns escravos preferem suicidar-se, «atirando-se do precipício» para escapar aos seus perseguidores. As crianças são capturadas ao passo que os pais são mortos nos confrontos com os destacamentos. Alguns campos de Marons são ocupados por um número considerável de indivíduos; as cabanas de madeira sólidas, as ferramentas, os utensílios da vida quotidiana, os campos plantados com milho, «batatas do perroux» e outras leguminosas, atestam a durabilidade ao longo do tempo destas aldeias. Os prisioneiros dizem viver em maronage há já vinte anos. Alguns fugiram de Ile de France, localizada a 200 km da costa de Bourbon, na esperança de chegar mais facilmente a Madagáscar por mar! Há acampamentos destinados à retirada em caso de ataque de milícias…
As aldeias localizadas nos pequenos planaltos formadas pela erosão, geralmente situadas perto de um ponto de água, são por vezes protegidas por uma paliçada de ramagens protegidas em baixo por valas plantadas com estacas de madeira cuja ponta é endurecida pelo fogo. Estas armadilhas cobertas de vegetação causam ferimentos graves aos caçadores dos destacamentos . Estes pequenos planaltos são parte integrante da estratégia dos Marons: movem-se de um planalto para o outro para escapar aos destacamentos de caçadores e para poder beneficiar de um espaço protegido com reservas alimentares e esconderijos para as armas. Esta rede de pequenos planaltos era objeto de manutenção regular para servir esta estratégia. As ravinas, as encostas e passagens estreitas são os caminhos que ligam estes ilhéus que formam o arquipélago do Reino do Interior. Os Marons têm cães que os alertam para qualquer presença suspeita, causando ferimentos graves aos caçadores.
A vida dos Marons levou-os a uma domesticação e organização propícias a uma vida itinerante, embora alguns lugares como Ilet-à-Cordes pareçam ter reunido três gerações de Marons de forma perene, de acordo com um relatório de destacamento de 1752. A toponímia pretendia satisfazer determinados requisitos de elevado valor informativo .
A onomástica aplicada ao maronage desenvolveu-se na Reunião desde 2005 com o trabalho de Charlotte Rabesahala, permitindo encontrar as palavras de pessoas escravizadas através de topónimos e antroponímicos que ainda hoje se encontram nos mapas da ilha, mas cuja ortografia e pronúncia foram transformadas pelo tempo até perderem o significado original .
A análise e interpretação dos resultados da investigação multidisciplinar também permite identificar e localizar melhor os termos derivados do maronage, venham eles da linguagem dos «destacamentos dos caçadores de escravos» ou dos próprios Marons. Um espaço aparece então dentro da ilha – o Reino do Interior – acessível apenas aos iniciados (os Marons) que transmitem oralmente uns aos outros o mapa mental das áreas montanhosas com o intuito de poderem orientarem-se, reagruparem-se, protegerem-se dos caçadores e organizarem-se noutra vida após a morte.
A análise e o cruzamento de todas estas informações permitem, finalmente, elaborar um mapa do maronage no século XVIII com os acampamentos conhecidos dos Grandes Marons. O mapa do maronage inclui os topónimos encontrados nos documentos em todos os períodos, sendo que aqueles que foram atribuídos pelos Marons são de origem malgaxe. A estes acrescem, em francês, os que foram atribuídos pelos caçadores de Marons .
Para Charlotte Rabesahala, «a toponímia do espaço do maronage oferece um rico inventário dos recursos do território, tanto em termos de abastecimento, como de logística de guerra e resistência. Traça uma verdadeira geografia física, moral e espiritual de um ‘Reino do Interior’ disponibilizada a diferentes grupos e transmitido de geração em geração».
Não obstante, o fim do grande maronage avizinhava-se à medida que este território diminuía proporcionalmente à extensão dos colonos que ocupavam cada vez mais as terras alturas da ilha a partir do século XIX, dando início à colonização oficial dos três circos. O protesto dos Negros foi então sufocado sem, no entanto, desaparecer. Embora os documentos nos informem pouco sobre o assunto, alguns grupos de marons persistiram nesta ação até à abolição da escravatura em 1848.
A recente atualização da questão da maronage na Reunião revela informações cruciais que ainda precisam de ser aprofundadas. Por último, temos de levar em consideração o profundo desejo da população de compreender melhor a história deste ato de resistência que é o maronage, a fim de poder dar-lhe o seu lugar de direito no seio da nossa história local e nacional.