Os desembarques de escravos aumentaram à medida que a economia de plantação foi ganhando forma, de modo que a população escrava se tornou maioritária por volta de 1715 . tornando-se necessário redigir um Código Negro local, as Cartas Patentes de 1723. A população servil da ilha Bourbon era principalmente oriunda de Madagáscar, da África Oriental e, em menor escala, da África Ocidental e da Índia. Este regime perdurou ininterruptamente até à Abolição de 1848.
Como é que se pode «resistir» enquanto escravo numa sociedade de plantação?
A coerção, a exclusão e a violência eram os pilares do sistema esclavagista. Os métodos coercivos eram utilizados a fim de obter a produção do trabalho, na relação senhor-escravo ou na segregação social quotidiana.
Fundamentalmente, os escravos não tinham outra opção senão tentar atenuar a violência económica, social e física através de uma variedade de ações de oposição conhecidas como resistência.
Existiam duas formas principais de resistência: as forças contrárias visíveis e ilegais e as forças de resistência que impediam o bom funcionamento da sociedade através de efeitos secundários inesperados, mas não necessariamente ilícitos.
Para além da reestruturação de identidades, que os historiadores têm dificuldade em quantificar, como a preservação de um ritual, de uma língua, de conhecimentos, bem como de modos de defesa que podiam ir do riso ao suicídio, os ajustamentos materiais deixaram vestígios nos arquivos jurídicos.
Quando o escravo Pierre-Paul, crioulo de 60 anos, compareceu na audiência de 14 de julho de 1840 por roubo noturno com arrombamento e violência grave contra S. José Ricquebourg, na zona de Ste-Suzanne, foi surpreendido pelo guarda do galinheiro, que atacou com um machado. As circunstâncias atenuantes foram aceites e Pierre-Paul foi condenado a 5 anos preso com grilhões e 30 chicotadas .
Este caso de roubo era clássico, na medida em que o criminoso era um homem (94% dos casos), crioulo (48% dos casos), que atacara os bens de uma pessoa livre (63% dos casos) mas que, como era muito frequente, provocara uma vítima colateral, um escravo, que exercia uma profissão de risco (guardião). O objeto do furto também era comum. Os escravos roubavam alimentos ou gado para se alimentar: a subnutrição, por vezes crónica, observada em certas plantações estava, de facto, na origem de muitos roubos. Era igualmente usual o recurso à violência após o ladrão se apanhado em flagrante delito, sendo o roubo um fator evidente para tal acontecer. O que é menos típico neste exemplo é a idade do escravo (60 anos), uma vez que a idade média rondava os 30 anos, o que leva a crer que vivia numa situação muito precária.
Pierre-Paul acaba por sair do anonimato, ao afirmar, através do seu roubo, que não aceita as suas condições de vida.
Os arquivos estão repletos de exemplos semelhantes; o roubo, sob todas as suas formas, era a manifestação mais frequente da resistência servil. As autoridades preocupavam-se regularmente com este flagelo: em 1817, numa carta dirigida ao General Comandante do Rei, o Procurador-Geral referia a «impunidade, sobretudo com a aproximação da estação das chuvas, que sendo a pior do ano, deixa grande número de trabalhadores sem trabalho nem meios de subsistência».
Os roubos diários e a respetiva recetação geravam um tráfico importante no qual estava envolvida toda uma parte da população branca ou de cor livre marginalizada da ilha. Até certo ponto, as autoridades toleravam esta economia
paralela , mas ao mesmo tempo temiam as alianças de miseráveis, tentando constantemente manter a ordem pública. A justiça estava particularmente atenta à falsificação de documentos e não hesitava em condenar severamente os Petits Blancs que se aventurassem neste domínio:
O abuso, por parte de algumas pessoas, de emitir autorizações escritas a escravos para venderem objetos que não lhes pertencem, sob a falsa assinatura do seu senhor, incentiva o roubo perpetrado por negros(…) era absolutamente necessário dar o exemplo para intimidar aqueles que ousassem realizar falsificações igualmente contrárias à ordem pública .
A preservação material, raramente citada nos estudos sobre a resistência, está, no entanto, no âmago do protesto servil: um meio de adaptação para sobreviver no dia a dia.
A resistência-rutura era uma fuga através da qual o escravo «quebrava as suas correntes» e experimentava a liberdade. Esta fuga, designada por marronnage , implicava a rutura com o espaço onde se vivia e provocava uma suspensão da alienação. Intermitentes ou permanentes, estas fugas existiram desde o início da escravatura e perduraram, permanecendo um meio privilegiado de protesto até à Abolição.
Neste contexto, numa ata de 1839, constata-se uma forma de solidariedade servil na detenção de Júpiter e Pierre-Louis nas imediações de St-Pierre. A caminho do seu posto, a patrulha da milícia passava em frente da sua propriedade quando foi surpreendida ao ver escravos, incluindo o capataz, a atender aos pedidos de socorro dos marrons.
Léonard, o primeiro capataz, falando com autoridade aos milicianos, ordenou-lhes que libertassem os prisioneiros e, quando estes se recusaram a obedecer a tais injunções, tentou imediatamente, com a ajuda dos outros negros, libertar à força Júpiter e Pierre Louis, que também lutavam para conseguir escapar.
Seguiu-se uma rixa entre «o cabo Berdinin e os vários escravos, que levavam a melhor até que a vizinha, Dame Payen, interveio, mandando chamar reforços » .
As sentenças de morte por «grand marronnage» são encontradas tardiamente nos arquivos. Por exemplo, em janeiro de 1842, quando Fantaisie, um «mau indivíduo» de S. Deguigué, que cumpria uma pena de prisão perpétua amarrado a grilhões nos calabouços em Saint-Denis, conseguiu fugir para as montanhas da ilha, foi ativamente perseguido por um destacamento. Defendeu-se com veemência, tentando assassinar vários caçadores, entre os quais o chefe Louis Marcelin. No julgamento, em que foi acusado de «tentativa de homicídio, um dos quais premeditado, agressão e rebelião contra membros do destacamento sem circunstâncias atenuantes e em estado de reincidência», foi condenado à morte, sem surpresa.
As razões de partida indicadas nos arquivos eram amiúde muito circunstanciais. Os escravos partiriam por nostalgia da sua terra natal, após terem sido vexados na plantação, devido ao receio de serem castigados por uma falta cometida, em reação a demasiada violência…
O marronnage variou de intensidade durante o longo período de escravatura na ilha, contudo nunca envolveu mais de 10% da população. Embora a dimensão numérica e o vigor dessa oposição não tenham resultado no aparecimento de um «Spartacus» à cabeça de um motim generalizado , permitiram aos escravos escapar a uma situação de alienação e, em certa medida, proporcionaram aos brancos um meio de contenção, evitando a eclosão de uma guerra civil. A polícia, o poder legislativo e o poder judiciário começaram então a vigiar esses movimentos e a adaptar as medidas repressivas para os canalizar.
A preocupação das autoridades e a contínua reiteração da opressão repressiva são suficientes para compreender até que ponto a Colónia temia o movimento emancipador. Não havia necessidade de heróis; esse temor era, por si só, o indício de uma resistência indomável à ordem.
A «resistência-agressão» era a forma mais radical, visível e temida das forças da oposição, a ela subjazendo diferentes formas de resistência, com diversos graus de veemência: desde o menor que podia ir de furto, a insolência no trabalho, até à agressão física; o escravo podia decidir atacar a sua família ou a si próprio, num processo de autodestruição. Por fim, as suas ações podiam levar à deterioração ou à destruição dos bens de produção e, por vezes, à execução dos representantes da sociedade esclavagista ou de todos os homens, incluindo os escravos, que se interpunham no seu caminho. O que todas estas formas de oposição tinham em comum é o facto de se cometer violência, sendo que cada uma delas podia ser passiva ou ativa, premeditada ou impulsiva, consciente ou inconsciente. É fácil compreender porque é que este tipo de resistência deixou muitos mais vestígios nos arquivos até ao final do período da escravatura .
Num caso de incêndio criminoso associado a um homicídio, julgado em tribunal em junho de 1840, a animada discussão em torno da atenuação das penas fornece-nos pormenores interessantes sobre os protagonistas e a gestão do sistema judiciário.
(…) Os designados Thomas e Avril foram acusados de terem incendiado a cabana de Quentin, o seu capataz, e de o terem tentado assassinar. Thomas alegou ter uma queixa contra o capataz; contou o sucedido a Avril e comunicou-lhe a sua intenção de incendiar a cabana de Quentin. Longe de o dissuadir deste plano, Avril
incitou-o a uma vingança, ainda que infundada, e impôs como condição para a sua participação no crime planeado que, antes de incendiar a cabana de Quentin, a porta fosse barricada de modo a que não houvesse qualquer meio de escapar à morte.
Ambos condenados à pena capital pelo Tribunal de St-Paul a 22 de junho, a comutação da pena de Thomas foi objeto de um debate entre um referendário que se opunha a essa comutação, considerando-a «uma falsa filantropia que leva a geração atual à destruição de todas as salvaguardas da sociedade», e um juiz que recordava que «Seria rigoroso punir com uma pena mais severa aquele que, movido pela vingança, concebeu a ideia de incendiar uma cabana, do que aquele que, a sangue frio, propôs o meio de sufocar uma vítima humana no incêndio.» No final, a sua pena foi comutada à perpetuidade de trabalhos forçados .
Ao passo que os homicídios eram regularmente investigados e condenados , os fogos postos eram muito raramente registados, sendo o capataz, que era o controlador dos escravos, o objeto da violência. Como representantes da ordem esclavagista no seio do grupo servil, eram vítimas recorrentes de escravos resistentes.
Estes três exemplos de protesto servil, perspetivados por vias de uma abordagem quantitativa mais ampla dão-nos uma imagem mais clara da realidade da resistência à escravatura. O regime colonial tentou impor um ideal de hierarquia que assentava na coerção e na dominação. Qualquer ação que procurasse minar esse ideal constituía uma resistência, fosse ela legal ou ilegal. Muitas vezes, longe de ser espetacular, organizava-se no quotidiano, atenta ao contexto, como um longo trabalho de sabotagem.
Infringir a lei quando se era escravo não era equivalente a infringir a lei quando se era homem livre. O ato ilegal de um escravo obrigava a Colónia a integrá-lo na sociedade dos homens: a sua responsabilidade, finalmente reconhecida, pulverizava o seu estatuto de «bem móvel». A isto acrescem todas as oposições não quantificáveis através das quais o escravo lutava contra a desintegração da sua identidade.