Era uma mulher excecional na sociedade colonial do século XIX: uma católica fervorosa, com uma espiritualidade peculiar e uma consciência atormentada, era também uma mulher de ação, incansável e determinada, bem ciente da vida política e económica do seu tempo
De 1811 a 1847, a jovem Camille Desbassayns conformou-se com os desejos da sua família e sacrificou-se aos códigos de boa conduta das mulheres da sociedade colonial do seu tempo.
Filha única, visto que a irmã e os dois irmãos morreram na infância, Camille Desbassayns foi enviada para um internato em França, ainda adolescente, para receber, longe dos pais e da sua ilha natal, uma educação austera, que na época era reservada aos filhos de boas famílias da colónia.
Aos catorze anos, o comportamento da aluna não parecia corresponder às expectativas dos que a rodeavam: “ela está a sair-se bem, maravilhosamente bem, mas nem sempre se comporta do mesmo modo: já não sai há muito tempo por estar de castigo…”, escreveu uma das suas primas no dia 28 de abril de 1825 .
Um ano depois, porém, outra prima, Pauline Desbassayns, anunciou: “Tenho muito prazer em informar-vos que Camille fez a sua primeira comunhão anteontem, o que é a prova de que se está a portar bem […] Estou muito satisfeita com as suas maneiras e a sua atitude, e espero que se tenha corrigido… ”
No dia 7 de setembro de 1826, a jovem acrescentou: “[Ela] parece gostar muito de mim, eu retribuo-lhe bem, porque é muito boa menina, órfã como eu, e numa situação muito menos agradável, já que não está com a sua família tal como eu, está no internato, do qual só sai uma vez cada 15 dias .”
Por volta de 1830, Camille Desbassayns regressou a Bourbon. Louis Charles Jurien de la Gravière, Ordenador de Bourbon, pediu a sua mão. O casamento ocorreu no dia 25 de abril de 1831. Os recém-casados embarcariam pouco tempo depois para a França, onde o Sr. Jurien assumiria as suas funções de comissário-geral da Marinha e prefeito marítimo de Rochefort.
No entanto, seis anos após o seu casamento, a jovem confidenciou à avó: “Infelizmente, querida avó, parece que estou destinada [sic] a envergonhar para sempre a sua estirpe e que nunca lhe darei uma pequena Ombline Jurien. Teria sido uma grande alegria para mim dar o seu nome a uma filha, porém isso é-me recusado… ”
Uma carta de Betsy Desbassayns, datada de 24 de outubro de 1842, revela como Camille Jurien lida com esta situação dolorosa:
Esta querida prima [… ] atirou-se com paixão, com exagero, para a religião. Vai à missa todos os dias, todos os dias acorre sozinha, com um vestido velho, a todos os pobres da cidade, priva-se para enviar aos refugiados espanhóis em França de tal maneira que até parece uma freira, na realidade até faz pena esta pobre amiga que só aspira a ter a sua fortuna para dar a este e àquela […]
Alguns anos depois, os cônjuges poriam termo à sua vida matrimonial por mútuo acordo. Camille Jurien não se queixou e, até à sua morte em 5 de setembro de 1858, o Sr. Jurien autorizou-a a usar a sua fortuna como bem entendesse.
De 1847-1848 até 1870, Camille Jurien mergulhou de corpo e alma em grandes aventuras, dificilmente se ajustando ao papel atribuído às mulheres daquela época, obedecendo assim aos movimentos da sua consciência e ao que ela entendia como injunções divinas.
Enquanto Camille Jurien virava a dolorosa página da sua vida de esposa, questionou o sistema da escravatura em que a sua fortuna assentava. Apoiou a condenação inequívoca da escravatura e do tráfico de escravos defendida pelo Padre Lacordaire , restaurador da ordem dos irmãos pregadores em França e precursor da doutrina social da Igreja .
Oito anos mais tarde, Lacordaire assinou em nome de Camille Jurien a escritura de compra do local do mosteiro dominicano de Prouilhe, destruído durante a Revolução, escritura essa que estipulava: “A presente aquisição servirá para reutilizar […] a indemnização concedida pelo governo na sequência das disposições do decreto de vinte e sete de abril de mil oitocentos e quarenta e oito relativo à abolição da escravatura nas colónias francesas .”
Esta precisão é fundamental aos olhos daquela que empreenderia uma obra ainda inédita de expiação, se não de reparação, dos crimes da escravatura, como viria a explicar alguns anos antes da sua morte:
A indemnização, o preço dos nossos negros, parecia-me uma coisa sagrada, mas não adequada, e muitas vezes, perguntei a N.S. para o que ele a destinava,… ele fez-me ver, quando cheguei a Paris, aquando do meu regresso de Prouille, que esta indemnização devia ser usada para reconstruir este convento em expiação pelos crimes da escravatura e por todos os meus parentes que viveram durante este período .
Camille Jurien investiu mais de um milhão de francos nesta obra, mas após a sua morte, as terras e a construção ainda inacabada do mosteiro foram vendidas em leilão. Três dominicanas de Nay adquiriram-nas em leilões a 11 de julho de 1879, por 60 000 francos, e “o culto litúrgico foi retomado [em Prouilhe] em 29 de abril de 1880… ”
Camille Jurien também financiou hospícios, a instalação da casa-mãe das Irmãs Auxiliadoras das Almas do Purgatório em Paris, a construção da igreja do seminário francês em Roma e muitas outras obras pias.
Quando o Papa Pio IX foi destituído dos seus poderes temporais em 21 de dezembro de 1848, pela Revolução Italiana, e depois forçado ao exílio em Gaeta, ela atravessou o Piemonte – com uma escolta de bandidos, segundo reza a lenda – para se juntar a ele e dar-lhe o seu apoio e uma soma de 300 000 francos. Durante os vinte anos seguintes, quando não estava na Reunião ou em Prouilhe, acompanhou e cuidou do batalhão internacional dos Zouavos em todos os campos de batalha dos Estados Papais invadidos, até ao cerco e capitulação de Roma a 20 de setembro de 1870. Durante todos estes anos, “A Senhora Jurien tinha entrada livre no Quirinal e no Vaticano. O Santo Padre recebia-a muitas vezes em audiências privadas e tratava-a como uma filha”, de acordo com a Dominicana M.D. Constant .
Quando Camille Jurien se tornou proprietária da vasta propriedade do pai , em 1850, estava demasiado ocupada na Europa para ali residir permanentemente. Por isso, confiou a gestão dos assuntos correntes ao seu primo Albert de Villèle. Fez uma longa viagem entre os dois hemisférios uma dúzia de vezes, numa direção ou na outra, para ficar alguns meses na sua propriedade. Em 1858, no entanto, a Sra Jurien passou um ano inteiro em Bel-Air, a correspondência que então manteve com a Irmã Marie de la Providence atesta a sua proximidade com os trabalhadores contratados e os recém alforriados da propriedade . Não obstante a relutância da sua família, decidiu mudar-se para o seu hospital , “com aqueles a quem devo amar, curar em nome do Salvador, a quem ainda ignoram. A maioria eram idólatras”, escreveu a 11 de junho de
1858 . O Bispo da Reunião, escreve a este respeito: “Ela vive num pequeno quarto do seu hospital onde vi por cadeira apenas um cepo ou uma tábua de madeira em mau estado, apoiada em quatro pés de madeira .
Nesse mesmo ano, a Sra. Jurien colocou a primeira pedra de uma capela de pedra, suficientemente grande para acomodar todos os trabalhadores aos domingos, e empreendeu uma expedição marítima para ir buscar novos trabalhadores a Zanzibar, onde a escravatura ainda estava em vigor.
A Sra. Jurien não confiava nos recrutadores da Reunião que se comportavam como os traficantes de escravos vilipendiados por Lacordaire em 1847, e em 28 de outubro, chegou em pessoa a Zanzibar a bordo do Pallas. Falou em privado com o jovem sultão Sayyid Majid bin Said para lhe pedir permissão para instalar um hospital de escravos em Zanzibar, e este último, que anteriormente se tinha recusado a tratar com os comandantes dos navios da Reunião, autorizou a Sra. Jurien a comprar 200 escravos no seu território .
Contudo, a viagem de regresso correu mal: metade dos recrutas morreram de disenteria ou varíola, apesar dos cuidados que lhes foram prestados. O Pallas chegou ao porto de Saint-Denis em 13 de dezembro de 1858 e o pesadelo continuou durante toda a quarentena no navio. Esta catástrofe abalou profundamente a Sra. Jurien que, facto extremamente raro na sua correspondência, confessou o seu desespero: “…tudo parecia em [mim] aniquilado, no fundo do abismo !”
Sem dúvida assombrada pela sua responsabilidade neste desastre e pela epidemia de cólera que irrompeu no ano seguinte, a Sra. Jurien trouxe para a ilha, em 1860, uma comunidade de Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo para cuidar de hospitais em Bel-Air e noutros lugares da colónia. Uma delas, a Irmã Petit, testemunha os cuidados prestados por Camille Jurien aos seus contratados e alforriados:
Chegámos a Bourbon a 7 de março e a 8 de março a Bel-Air. Havia na sua propriedade uma espécie de enfermaria para os pobres negros, empregados no cultivo da cana-de-açúcar. Sem tirar um único dia de folga, depois de uma viagem tão longa, a Sra. Jurien pôs mãos à obra para arrumar e organizar este quarto onde ficaria connosco durante um mês. Começou a tratar e a curar estes pobres negros como uma mãe faria para o seu próprio filho, cuidando dos doentes, dando-lhes a comida preparada por ela, contentando-se com um pouco de arroz e algumas ervas aromáticas como alimento para si própria. […] Ninguém era infeliz na sua propriedade. Cada escravo libertado em 1848 tinha a sua pequena cabana, o seu pedaço de terra e o seu pequeno jardim.
Posteriormente, a ruína da cana levou à ruína da Senhora Jurien. Em 1868, durante uma última estadia na propriedade de Bel-Air, que já não geria, constatou que os compromissos assumidos por ela com os trabalhadores já não eram respeitados: as mulheres eram reenviadas para as suas cabanas, privadas de trabalho e, portanto, de salário e os idosos já não eram cuidados pelo estabelecimento. A sua correspondência com o seu advogado e amigo, Christol de Sigoyer , e as instruções reiteradas que lhe deu, são uma prova da sua determinação em restabelecer os direitos e vantagens adquiridos pelos seus trabalhadores contratados.
Na Europa, até 1870, as cartas do advogado de Camille Jurien situavam-na nos Estados Papais. Ao tomar conhecimento da perda de todos os seus bens, escreveu: “A minha alma sentiu uma comoção inefável ao ouvir: Não tens mais nada […] Sou livre como [os passarinhos] e pairo sobre este mundo que pensa comprimir-me, mas ao invés me dá asas .”
Após 1871, a mulher de ação retirou-se então para as terras do mosteiro de Prouilhe, onde vivia na pobreza na companhia de duas mulheres alforriadas, Marie-Antoinette, a sua “filha adotiva” e Magdeleine, a sua “filha de confiança” . Morreu em Paris em 1878 e os seus restos mortais foram transferidos para a cripta do mosteiro, que hoje alberga uma comunidade de monjas dominicanas de todas as nacionalidades.