Além disso, ilustra, nas entrelinhas, o silêncio dos escravos que criaram essa riqueza sem qualquer reconhecimento final, a não ser o direito de entrar na Chapelle Pointue. O paternalismo que orientou a gestão da propriedade até 1820 foi de encontro às realidades do incipiente capitalismo açucareiro: não é possível alforriar um meio de produção.
Duas histórias — de glória e silêncio, por um lado; de poder e exploração, por outro — que ainda hoje povoam o inconsciente coletivo dos naturais da Ilha da Reunião.
Acabado de chegar da Índia (1762 ), agraciado com a insígnia de Cavaleiro de São Luís pelos seus feitos, Henri-Paulin Panon Desbassayns decide estabelecer-se nas suas terras para as explorar. Tratava-se de uma parte da herança (1753) da avó materna, Thérèse Mollet, viúva Duhal, da antiga concessão Duhal datada de 1698; Henri-Paulin herdou uma terra em St−Paul e duas em St-Leu, num total de 109 hectares .
Quem o aconselhava era Julien Gonneau, apelidado Montbrun, cuja amizade selaria a 28 de maio de 1770 pelo seu casamento com Ombline, acabada de fazer 15 anos, única herdeira de Gonneau-Montbrun. O dote é a herança da mãe, Marie-Thérèse Léger Dessablons, ou seja, dois terrenos de habitação (de 52 ha em St-Gilles e na Grande Ravine) e uma instalação em St-Paul, totalizando mais de 80 ha.
Essa união em 1770, junta, então, uma propriedade já importante, de cerca de 190 ha, mas muito dispersa, de Saint-Paul, cidade, a Saint-Leu, passando por Saint-Gilles, a Saline e a Grande Ravine.
Entre 1770 e 1780, a propriedade conhece um crescimento de 75 %, desde logo, em 1772, graças à herança de Augustin Panon, pai de Henri-Paulin (96 ha em Trois-Bassins), e, depois, em 1776, com um terreno no Bernica (49 ha), vizinho das terras de Gonneau-Montbrun, pai de Ombline. Nessa altura, manifesta-se claramente a estratégia do casamento de Ombline e Henri-Paulin: uma recentragem geográfica das terras nos Hauts de Saint-Paul, em mais de 350 ha.
Num segundo período de 1780 a 1795, o crescimento da propriedade foi mais gradual e realizou-se através de aquisições e adjudicações; a racionalização dessas implantações fez-se por trocas. As atas das adjudicações demonstram a exasperação dos outros concorrentes, incapazes de resistir ao poderio de Desbassayns. Esse crescimento das terras reconstituiu, pouco a pouco, a antiga concessão Duhal de 1698 (à exceção de ¼ dos herdeiros Roux). O recenseamento de 1789 regista o domínio em 420 ha. Segundo o recenseamento do Quartier Saint-Paul, Henri-Paulin é o habitante mais tributado seguido de perto por Julien Gonneau-Montbrun.
Uns anos depois, na alvorada do século XIX, mesmo antes da morte de Henri-Paulin, o património da família expandiu-se claramente: chegaria a cerca de 750 ha ; a propriedade Desbassayns passava a ser a mais vasta da ilha.
Muito cioso de garantir os recursos e o património dos seus nove filhos (seis filhos e três filhas ), Henri-Paulin Panon Desbassayns concedeu doações em vida aos quatro primeiros sob a forma de terrenos de «habitação» ou ajardinados com cerca de 130 ha.
Após a morte de Henri-Paulin, a 19 vindemiário do ano IX (11 de outubro de 1800), seguiu-se a desintegração do domínio inicial. Metade dos bens da comunidade voltaram para a viúva Desbassayns: a propriedade principal de Saint-Gilles (250 ha) com a casa de família, metade da propriedade da Saline (27 ha/2), um terço de uma propriedade no Bernica (16 ha/3), um terço do terreno de Carosse (14 ha/3), bem como metade de um terreno ajardinado em Etang St-Paul, ou seja, um total de, pelo menos, 270 ha.
A outra metade foi partilhada entre os nove filhos (269 ha), tirando as doações já feitas em vida . A desintegração da propriedade é sol de pouca dura, levando, quando muito, sete anos, aos filhos dos Desbassayns para organizarem as suas vidas e assentarem arraiais.
A reconstituição da propriedade pela viúva Ombline Desbassayns passou, desde logo, pela compra seletiva de uma parte das terras dos filhos, que delas iam abdicando, para se dedicarem às suas escolhas pessoais . As terras que a Madame Desbassayns comprou de volta representavam metade da herança que passara para os filhos e incluíam as zonas da Saline, do Bernica e, sobretudo de Saint-Gilles e de Etang de St-Paul.
Entretanto, a remodelação do domínio Desbassayns começou a ganhar forma com a herança de Julien Gonneau-Montbrun, falecido a 9 de setembro de 1801, de quem Ombline Desbassayns era a única herdeira, e que incluía, para começar, a propriedade do Bernica, uma instalação em Saint-Paul na Chaussée Royale e os jardins ao redor. Um legado importante em dinheiro concedeu à Madame Desbassayns os meios necessários para reembolsar os filhos. Punha-se em marcha a política de compras seletivas e aplicação dos bens da herança Gonneau-Montbrun na constituição de grandes propriedades emparceladas mais fáceis de cultivar, organizar e controlar, num processo que acarretaria uma dezena de transações imobiliárias (compras, vendas e trocas), entre 1810 e 1845. Em 1845, ano do testamento da Madame Desbassayns, o seu património imobiliário compreende os três conjuntos de St-Gilles, do Bernica e St-Paul :
– Região de St-Gilles: a propriedade principal com casa de pedra (195,5 ha, ou seja, três quartos da antiga concessão Duhal), os terrenos Parny/Lefort (39,7 ha), os terrenos Carosse (86 ha) e Ricquebourg (15,5 ha), o terreno Tourangeau (23,7 ha) e o terreno da Grande Ravine que totalizam cerca de 400 ha, dos quais 277 são facilmente cultiváveis e, de entre os quais, 193 ha, são de alta qualidade;
–Região do Bernica: sete terrenos totalizando 192 ha, dos quais dois «o Bernica» (com casa em pedra) e «Ricquebourg Maunier» perfazem quase metade;
–Região de St-Paul: dois terrenos de instalação de 6000 m2 com casa principal em pedra e quatro terras ajardinadas de 23 ha, cultivadas com cana-de-açúcar.
Este conjunto de terrenos representava 492 ha, aos quais acresciam 190 ha de bosques e 1000 ha de savana, o que perfazia um considerável domínio. Em 1845, deixou de ser a primeira propriedade da ilha e passou a ser uma das dez primeiras. Com efeito, a partir do século XIX, constituíram-se vários grandes domínios no leste e no sul da ilha, em torno da cultura da cana-de-açúcar.
Uma vez ultrapassada a incerteza do início do povoamento de Bourbon, a escravatura foi-se instituindo progressivamente nos dez últimos anos do século XVII tornando-se regra na exploração agrícola da colónia e seguindo um processo já praticado nas Antilhas desde o século anterior. Legalizada em Bourbon pelos decretos de 1715 e 1718, a escravatura era regida por um Código Negro específico promulgado por édito em dezembro de 1723 . No período estudado (1770-1846), a gestão da colónia voltou para as mãos do rei (1767). Nos finais do século XVIII, a grande questão que o sistema colonial enfrentava era a da abolição da escravatura : votada pela Convenção, em fevereiro de 1794, e rejeitada pelos proprietários de Bourbon, a abolição seria anulada por Napoleão, que restabeleceria a escravatura em 1802. A secessão de St-Domingue foi vivida com terror; a abolição do tráfico, em 1817, foi, em parte, contornada, contudo seria preciso esperar por 20 de dezembro de 1848, para que Sarda Garriga proclamasse, por fim, a abolição da escravatura a nível local. Falecida em 1846, a Madame Desbassayns não teria vivido nada disso.
A exploração da propriedade colonial não seria concebível sem o trabalho servil, e a propriedade Desbassayns inscrevia-se nesse quadro.
«Bem móvel» comprado e vendido sem outro interesse a não ser o trabalho, o escravo é seguido a par e passo pela administração. Aliás, cada mutação implica uma taxa. Os recenseamentos individuais anuais dos proprietários — avaliando precisões com o tempo — são, para o historiador, um meio limitado de abordar a realidade dos escravos de Panon Desbassayns, a que se juntam o livro-razão de Henri-Paulin, cartas da família e, por fim, o testamento muito pormenorizado da Madame Desbassayns.
O escravo é identificado por um nome próprio (atribuído pelo seu senhor), «categorizado» segundo o sexo, a idade, a origem étnica, dita «casta» (crioulos, malgaxes, moçambicanos, indianos ou malaios) e o ofício. Por fim, recebe uma classificação de idade, que evolui com os anos .
Quanto mais a propriedade se alargava, mais o número de escravos aumentava, sobretudo no período de crescimento da propriedade, entre 1770 e 1800, em que houve um aumento de mais do triplo das terras e de quase o quádruplo dos escravos. A partir de 1807 e até ao fim do nosso período, os números estabilizam: uma média de perto de 440 escravos para uma superfície de cerca de 450 ha.
1770 | 1776 | 1789 | 1797 | 1801 | 1807 | 1813 | 1829 | 1836 | 1845 | |
Superfície | 190 | ? | 420 | 720 | 270 | 400 | 472 | 469 | 441 | 492 |
N.º escravos | 80 | 254 | 348 | 417 | 250 ? | 429 | 485 | 462 | 430 | 401 |
O senhor domina tudo. Tratava-se, desde logo, de Henri-Paulin Panon Desbassayns e, depois, da mulher, Ombline Desbassayns, que o revezava quando ele se ausentava de Bourbon e que tomou o seu lugar após a sua morte, em 1800. Com mais de 65 anos, ela foi deixando progressivamente tudo nas mãos do filho, Charles-André, que se tornaria administrador dos bens da propriedade por convenção em 24 de maio de 1822.
O senhor é secundado por um (e, depois, mais) administrador(es), cujo papel começou a ganhar relevância a partir de 1800, geralmente, um crioulo de Bourbon ou, por vezes, um colono vindo de França, como Jean-Baptiste de Villèle, recrutado por Madame Desbassayns, entre 1799 e 1803. Em 1836, três administradores geriam cinco propriedades: dois crioulos e um colono de França, Frédéric Mion. Em 1845, Sosthène de Chateauvieux, neto da Madame Desbassayns, e Auguste Bouché, substituíram os dois outros ao lado de Frédéric Mion. Estes três administradores geriam vários «comandantes», todos escravos crioulos escolhidos pela sua lealdade aos senhores, que supervisionavam, eles próprios, bandos de escravos.
No centro dessa linha de comando, atestada pelos recenseamentos anuais e pelo testamento da Madame Desbassayns (1845), a especialização das tarefas dos escravos esboçava os contornos de uma segunda hierarquia: a dos valores.
No topo, os escravos da cubata (casa e pátio) dada a sua proximidade para com os senhores. O trabalho doméstico incluía servir os senhores e cuidar das crianças, tratar da casa e do jardim contíguo, executando as especialidades exigidas: cozinhar, fazer pão, lavar a roupa, engomar e prestar cuidados de enfermagem no parto. Os escravos seguiam muitas vezes os seus senhores da propriedade de Saint-Gilles para as outras (Bernica), a cidade ou, até, em casos excecionais, em viagens (em duas ocasiões, Henri-Paulin foi a França com um ou dois escravos domésticos da sua casa). A sua lealdade era regularmente testada e recompensada. Em 1807, eram doze; em 1823, 19; e, em 1845, oito.
Abaixo, estavam os artesãos (marceneiro, carpinteiro, pedreiro), os mais úteis na construção e reparação das casas e dos edifícios. Com a indústria do açúcar, o operário especializado ganhou o mesmo valor que o artesão.
A seguir, vinham os guardas (em 1815, 16; em 1823, 20; e em 1845, 35), que deviam evitar roubos não só da parte de estranhos, mas também dos escravos da propriedade. A proteção dos jardins e da horta incumbia muitas vezes às mulheres, ficando o gado e os campos à guarda dos homens.
Por fim, na base da hierarquia servil, ficavam os «negros de enxada» ou «negros de cultura», encarregados do trabalho agrícola, que formavam a «oficina», amiúde, agrupados em esquadrões ou «bandos» sob a liderança de um comandante. Em 1807, eram 302; em 1815, 304; em 1836, 310; e em 1845, 297 .
A terceira hierarquia instalada pelo sistema esclavagista tinha origem étnica. O senhor cuidava de misturar os cafres trazidos de Moçambique, os malgaxes da Grande ilha e os já nascidos no local («crioulos») no seio dos bandos para reduzir os sentimentos de solidariedade. Assim se estabeleceu uma hierarquia subtil dominada pelos crioulos cujo número (e cuja percentagem) aumentava (particularmente após a abolição do tráfico) e que os senhores favoreciam.
A única missão do escravo era trabalhar sob um permanente regime de disciplina. Os administradores e comandantes faziam reinar a ordem pelo chicote, a arma emblemática que ameaçava os recalcitrantes, a que se juntava todo um arsenal de castigos utilizados consoante a gravidade das «más ações» do escravo, entre as quais, o marronnage (a fuga), que ficava anotada nos recenseamentos.
O custo humano do trabalho torna-se, desde logo, evidente numa análise da mortalidade: entre 1786 e 1789, era de 3,4 %; de 1807 a 1845, variava entre os 2 % e os 3, 6%, consoante os anos. Esses eram os números médios da região do sotavento, em 1819 , que são inferiores aos da região do barlavento de Bourbon e das Antilhas (5 %). A idade média dos escravos mortos no domínio Desbassayns é de 49 anos para os homens e de 56 anos para as mulheres. Nos campos, contudo, a morte é ainda mais acentuada: 34 anos para os homens e 42 anos para as mulheres. Não vemos essa média descer com a cana-de-açúcar como nas Antilhas; com efeito, a partir de 1815, a taxa de mortalidade média parece diminuir. A nossa hipótese é que, com a abolição da escravatura, se tenha passado a tentar preservar o capital humano e a favorecer os nascimentos.
Quanto à doença e à invalidez decorrentes, nomeadamente, dos acidentes laborais, o testamento da Madame Desbassayns de 1845 refere-as sem especificar as causas ou se os escravos são ativos ou não . Essa noção de ativos demonstra claramente que as crianças doentes e inválidas trabalham. É por isso que avaliamos a percentagem de inativos em 5 %, o que corresponde à percentagem de crianças com menos de seis anos e de inválidos de «carta branca». Além disso, a correspondência trocada entre a Madame Desbassayns e os filhos refere o papel de «moço de recados» desempenhado pelos «negrinhos» entre as várias propriedades do domínio, separadas por distâncias de entre 10 km a 25 km.
A questão da alforria talvez nos permita esclarecer o posicionamento da Madame Desbassayns e, em geral, da família, em relação à escravatura. Com efeito, não será um bom indicador da clarividência e da compreensão que os senhores tinham dos novos desafios sociais que surgiram na França depois da Revolução? Recordemos que, entre 1789 e 1793, Bourbon contava com cerca de 8200 brancos, 1000 livres de cor e 38 000 escravos.
Nos anos 1780-1790, Henri-Paulin alforriou dois escravos, Pierre e Apolline (8 de abril de 1783), atribuindo-lhes uma porção de terras e meios de subsistência (segundo as normas em vigor). O anúncio da primeira abolição da escravatura (decreto de 4 de fevereiro de 1794) foi rejeitado pelos notáveis de Bourbon (entre eles, Henri-Paulin). Ao mesmo tempo, a 31 de março de 1794, Julien Gonneau, pai de Ombline, alforriou doze escravos, a quem cedeu um terreno na zona baixa de St-Gilles e 20 escravos no seguimento de negociações aceites pela Assembleia colonial.
A controlar as rédeas do domínio, após a morte do marido, a Madame Desbassayns iniciou um testamento em 1807 com uma proposta de alforria de doze escravos (com os recursos regulamentares, incluindo 20 escravos) — tudo isso, num período de reação extremamente conservadora na Assembleia colonial a que estavam ligados os filhos Joseph e Charles−André e os genros de Villèle. Essa disposição de 1807, porém, seria anulada pelo seu testamento definitivo de 1845. Como podemos explicar essa reviravolta?
Entre essas duas datas, dão-se duas revoltas de escravos no oeste da ilha — a primeira, em Saint-Paul, em 1809, a favor do avanço dos soldados ingleses, que seria travada num banho de sangue pelo ocupante inglês em nome da paz social; a segunda, em St-Leu, a 5 de novembro de 1811, igualmente esmagada com violência, um mês depois. Na causa estavam os maus-tratos e o desejo de liberdade. O medo alastrou-se imediatamente a todos os colonos, que eram uma clara minoria (em 1812, St-Leu contava com 5870 escravos, 427 brancos e 167 livres de cor).
Face a essa nova ameaça, a Madame Desbassayns redobrou os esforços para evangelizar os seus escravos, num ato saudado pelos filhos e que mereceu rasgados elogios do abade Macquet de visita à propriedade em 1840, para o qual se tratava de uma estratégia política: «Na propriedade que acabámos de visitar (a da Madame Desbassayns) […] a família cristã vive a sua fé com todo o fervor. Que espetáculo consolador ofereceria a colónia se todos os colonos assim fizessem evangelizar os seus escravos […] aqui não se temeria a emancipação […]». Em 1845, aos 90 anos, o único bem que deixou em testamento aos seus escravos foi a capela do domínio.
Lancemos a hipótese de, após a influência «progressista» do pai, a Madame Desbassayns — com o peso dos anos —, ir cedendo, pouco a pouco, às opiniões muito conservadoras dos filhos, Charles-André e Joseph, e do genro, Joseph de Villèle. A alforria deixou de fazer parte das suas escolhas.
A zona de Saint-Paul é tradicionalmente uma zona de produção de víveres, uma orientação útil dada pela Companhia das Índias, no início do século XVIII, para reabastecer as embarcações a fazer escala em Bourbon e na ilha de França. As únicas culturas comerciais dessa região eram as do café e do algodão ou, até, das especiarias e do índigo. As fichas de recenseamento revelam a importância dos víveres (para consumo próprio e a venda) cultivados entre 1789 e 1845. Na década de 1820, regista-se uma progressiva substituição do milho pela mandioca: mais fácil de cultivar e mais rentável, servia sobretudo para alimentar os escravos.
Em quintais | 1789 | 1807 | 1813 | 1823 | 1836 | 1845 |
Milho | 3000 | 2260 | 6000 | 6000 | 5500 | 1000 |
Arroz | 30 | 150 | 100 | 50 | ||
Mandioca | 3000 | 8000 | 15000 |
Esse aspeto da produção de víveres no domínio é reforçado pela importância relativa da criação para assegurar o consumo próprio, a venda e as funções de carreto (200 cabritos, 100 porcos e 130 bovinos, em 1789; os números evoluem para 53 cabritos, 90 carneiros, 40 porcos e 130 bovinos, em 1845, aos quais convém juntar 32 mulos).
Quanto às plantas comerciais, atente-se na queda das superfícies destinadas ao café (de 225 ha a 10 ha, entre 1807 e 1845) e ao algodão, substituídos pela cana-de-açúcar a partir de 1818, na propriedade de Bernica (50 ha, em 1823; mais de 200 ha, em 1836; e 150 ha, em 1845), e, depois, na de St-Gilles. O café e o algodão sofreram grandes intempéries (ciclones e secas, nos anos 1806-1807, em particular). A experiência da cultura da cana desenvolvida no leste da ilha por Charles e Joseph Desbassayns é conclusiva: a cana é mais resistente aos ciclones e de grande rendimento. A cada etapa da transformação do domínio, porém, a Madame Desbassayns serviu-se da sua autoridade para conservar uma parte suficiente de víveres nas suas terras.
A evolução da produção de cana (de 1200 a 4250 quintais, entre 1823 e 1845) foi favorecida pela introdução de técnicas modernas: em 1825, havia dois moinhos de açúcar no domínio, um deles a vapor. Era o estabelecimento mais moderno de Saint-Paul (de 25 refinarias, em 1827, apenas uma era a vapor, a da Madame Desbassayns) e foi designada de «refinaria modelo» para todo o oeste, servindo de lugar de demonstração para os proprietários do Quartier. Ao longo da década de 1830, foi beneficiando de várias inovações técnicas da autoria do engenheiro Wetzell, para melhorar a qualidade e o rendimento do açúcar . Postas a funcionar com o que já existia, as refinarias não produziam inovações sociais — quando muito, levavam à especialização de determinados operários das refinarias cujo estatuto se valorizava. A época não favorecia propriamente a libertação dos «meios de produção»!
Quanto à rentabilidade do domínio, é difícil de estabelecer. Em 1823, o total das produções é de cerca de 250 000 F . A avaliação do custo da manutenção dos 470 escravos desse mesmo ano é de cerca de 50 000 F, ou seja, 20 % do rendimento total; desconhece-se a amortização dos meios de produção e o custo dos insumos. Seria possível estimar os lucros do ano de 1823, na ordem dos 100 e 150 000 F? Ou seja, entre 8 % a 10 % da fortuna total da Madame Desbassayns (1845).
Além da atividade agrícola, porém, outras atividades económicas (comerciais, financeiras…) contribuíram para aumentar a riqueza da família.
A fortuna da família Desbassayns constituiu-se, claro está, pelas heranças e a compra de terras (Parte I) e a sua exploração pelos escravos (Parte II), mas não só. Para ela contribuíram também as atividades comerciais e financeiras conduzidas por Henri-Paulin, entre 1770 e 1793, em França, e, depois, pelos filhos, em Londres, Hamburgo e nos Estados Unidos, sobretudo, no período entre a Revolução e a Restauração.
O vasto domínio — que abrange terras e escravos — é sinal de riqueza.
Em 1777, a taxa do Quartier Saint-Paul baseada no número de negros indica que Henri-Paulin Panon Desbassayns era o mais tributado do Quartier (1587 Livres), seguido de Julien Gonneau (1043 Livres). Os donativos patrióticos em género na Revolução deram-lhe a mesma classificação (assim, a de 9 de julho de 1794: 4657 Livres Henri-Paulin e 3966 Livres pelo sogro). Por volta de 1820, o governador Milius diz: «A Madame Desbassayns ocupa o primeiro lugar tanto pelas (suas) virtudes […] como pela sua imensa fortuna. Ela recenseia 448 negros e paga 2537 F de contribuição; é a pessoa mais tributada da colónia» . Todavia, a fortuna da Madame Desbassayns acabaria por perder importância, face a novas fortunas que começavam a surgir. Em 1845, o testamento da Madame Desbassayns avaliava a totalidade dos seus bens em 1 557 080 F, dos quais, nomeadamente, 649 750 F em terrenos e 579 900 F pelos seus 401 escravos (mais de metade dos meios de produção). Na mesma época, 3 % dos parisienses detinham mais de 500 000 F. A fortuna da Madame Desbassayns correspondia aos números mais importantes das fortunas de Lyon, Rouen ou Lille em 1846 .
Para Henri-Paulin Panon-Desbassayns e a mulher Ombline, o êxito social exprimia-se por um modo de vida burguês ou, até, aristocrático, assinalado pelas compras que Henri-Paulin fazia nas suas viagens a Paris (dez.1784-junho 1786, depois início 1790-início 1793). O casal recebia na sua enorme residência de Saint-Gilles com grande luxo. O testamento da Madame Desbassayns é preciso nessa questão .
Pela sua abertura ao mundo, iniciada aquando da sua estadia na Índia, Henri Paulin depressa se apercebeu da importância da educação e das redes para a ascensão social duradoura da geração seguinte. Educação em França e nos Estados Unidos para uns, precetores em St-Gilles para outros — tudo seria feito para preparar os descendentes Desbassayns para liderar num mundo em mudança .
A educação, a cultura, a fortuna e a ação das redes facilitavam as alianças matrimoniais que acresciam, pouco a pouco, uma conotação aristocrática à reputação da família. Assim atestam os casamentos, por um lado, das primeiras filhas muito bem dotadas com a família de Villèle da velha nobreza do Lauragais (Mélanie casa com Joseph em abril de 1799; Gertrude casa com Jean-Baptiste em 1803), e, por outro, de um filho, Montbrun, em 1809, com Sophie Fabus de Vernan, da aristocracia de Bordéus. Os outros filhos casaram-se com burgueses muito bem colocados . Foi assim que, em dez anos, de 1797 a 1808, Henri-Paulin e, depois, Ombline, fortaleceram de forma duradoura o estatuto social e o prestígio da família.
A habitação Desbassayns (sobretudo St-Gilles, mas também Bernica e St-Paul) foi sempre um foco de influência. O casal Desbassayns e, depois, a Madame Desbassayns, recebiam os administradores e cada governador da ilha (o governador Milius era amigo íntimo), os viajantes (Auguste Billiard), os exploradores (o tenente Frappaz), os intelectuais (Wetzell), os homens das letras ou da Igreja (o abade Macquet) de visita à ilha. As cartas ou os relatos dos visitantes descrevem a importância do domínio, a opulência da casa e das suas receções e a vida quotidiana, salientando a grande hospitalidade da Madame Desbassayns.
Todavia, notam também a influência e o poder político do clã familiar.
Em 1768, Henri-Paulin foi nomeado capitão da milícia de Saint-Paul e promovido a major em 1773, mas eram títulos que mantinha mais pelo prestígio, pois dedicava-se sobretudo às suas terras , e, após 1770, com a sua nova família, a atividades comerciais lucrativas (armamento, negócios). Entretanto, dava sempre provas de interesse ao seu Quartier e à colónia. Ao fazê-lo, constituiu uma rede de notáveis com base no êxito económico, que foi aumentando ao longo do tempo e nas viagens.
De facto, o envolvimento nos assuntos públicos ou políticas da colónia ou da França ficaria essencialmente para os seus filhos e genros.
Foi assim que Julien-Augustin Desbassayns se tornou deputado na primeira Assembleia colonial criada na Revolução em 1791 e que Joseph de Villèle foi eleito deputado de St-Benoit, bastião conservador, em 1799. Em 1815, Henri-Charles ganhou assento no conselho municipal de St-Denis, e Jean-Baptiste de Villèle, no de St-Paul. Eram monarquistas inveterados, partidários da ordem e do sistema esclavagista instituído. Foi na Restauração, sob Luís XVIII e Carlos X, que a influência do clã Desbassayns se fez sentir mais. Philippe Richemont foi nomeado ordenador de Bourbon (antes de se tornar administrador das Índias); Joseph de Villèle, presidente do partido ultraconservador, era ministro das Finanças sob Carlos X, antes de presidir ao último ministério desse reinado durante o qual Philippe — que participou na comissão de preparação da lei orgânica de 21 de agosto de 1825, que regulamentava a nova organização de Bourbon — foi feito «Barão de Richemont».
Na ilha, Jean-Baptiste Pajot tornou-se segundo presidente do Conselho Superior da Colónia, e Charles-André, membro do Conselho Privado do Conselho-geral, presidente da Comissão de Controlo dos Negros do Serviço Colonial. Pela sua proximidade para com os de Villèle, o clã Desbassayns foi construindo, pouco a pouco, uma reputação de ultralegitimistas. Como declara um oponente contemporâneo: «Depois da Restauração […] uma ação levada a cabo pela família Desbassayns aliada à Mr. De Villèle faz pesar a sua funesta influência e um orgulhoso nepotismo sobre a ilha de Bourbon […]» .
Sob a monarquia de Julho, o clã Desbassayns não teve tanto apoio, e nenhum dos seus membros foi eleito nas duas primeiras legislaturas do Conselho Colonial, entre 1830 e 1840. O seu regresso na terceira legislatura (1838-1840) assinalou as suas últimas cartadas. Apegados aos valores do Antigo Regime, Charles e Joseph Desbassayns eram muito criticados por uma parte crescente da população urbana conquistada pelas ideias republicanas. Os novos grandes proprietários açucareiros da zona do barlavento ou do sul da ilha já tinham então adotado os temas da ideologia burguesa, demarcando-se deles e preparando-se para impulsionar o capitalismo açucareiro.
Este artigo retoma os principais levantamentos de um primeiro trabalho de investigação (mestrado defendido em Paris I, junho de 1977): Barret. D, «Monographie d’une habitation coloniale à Bourbon: la propriété Desbassayns (1770-1846)», atualizado por uma bibliografia recente e uma consulta parcial do Fonds Panon Desbassayns recentemente colocado nos Arquivos nacionais.
Este artigo foi redigido a partir do meu mestrado que, em certos aspetos, as quatro obras citadas permitiram atualizar. Tratando-se, porém, de uma bibliografia mais alargada, relativa a este período da história da Reunião, reportamo-nos, nomeadamente, às diferentes obras de Prosper Eve, Sudel Fuma, Hubert Gerbeau, Albert Jauze e Claude Wanquet.
Barret Danielle. «Monographie d’une habitation coloniale à Bourbon : la propriété Desbassayns (1770-1846)». Licenciatura defendida em Paris I Sorbonne. Junho de 1977.
Miranville Alexis. «Madame Desbassayns. Le mythe, la légende, l’histoire». Museu histórico Villèle/ Océan Editions. Dezembro de 2015.
Nida Anne-Marie. «Les Panon Desbassayns-de Villèle à Bourbon. Dans l’intimité d’une grande famille créole. 1676-1821». Surya Editions, 2018.
Panon-Desbassayns. «Petit journal des Epoques pour servir à ma Mémoire (1784-1786)». Museu histórico Villèle. 1991.
Wanquet Claude. «Henri-Paulin Panon Desbassayns. Autopsie d’un «gros blanc» réunionnais de la fin du XVIII siècle». Museu histórico Villèle. Fevereiro de 2011