Desde o início, estes dois temas estão presentes na literatura reunionense, de forma explícita ou implícita. Poder-se-ia mesmo afirmar que a literatura da Reunião nasceu de uma interrogação e problematização destes temas e assuntos, à imagem, e talvez à semelhança, da literatura das Maurícias, nomeadamente, da obra de Jacques-Henri Bernardin de Saint−Pierre, Paulo e Virgínia (1788) e, sobretudo, da sua Voyage à l’Isle de France, à l’Isle Bourbon, au cap de Bonne−Espérance (1773).
Em janeiro de 1775, Évariste de Parny escreve a Bertin, começando por elogiar a beleza da natureza, a excelência do ar e da fruta e a tranquilidade para, depois, salientar a monotonia e o tédio constantes, traçando um retrato negativo da sociedade crioula que considera fundar-se na preguiça, na decadência dos costumes, no engodo e na inveja, e tecendo uma longa descrição dos males da escravatura.
O seu texto mais importante, Chansons madécasses (1787), evoca os escravizados e, em filigrana, o marronnage, veiculando as suas vozes e produções poéticas. Escritas segundo o modelo do discurso poético malgaxe, estas canções versavam o que ouvia no espaço familiar, sendo os autores ou criadores originais do texto, com sua prosódia, retórica, ritmo e musicalidade, portanto, os escravos malgaxes de Bourbon. Poema anticolonialista e antiesclavagista que denuncia a predação colonial, o tráfico de escravos e a escravatura, Les Chansons madécasses é a primeira obra poética em prosa da literatura francesa.
A escravatura e a resistência constituem, assim, a base da literatura da Reunião, tanto em francês como em crioulo. Em 1828, Louis-Émile Héry publica as suas Fables créoles dédiées aux dames de l’Isle Bourbon e, em 1821, nas Maurícias, François Chrestien publica Essais d’un bobre africain. Tal como o título do poema em prosa de Parny evocava as vozes malgaxes, o da obra de Chrestien aludia a um instrumento musical africano, o bobre. É significativo que a terceira edição alargada da obra de Louis Héry (1856) se intitule Nouvelles esquisses africaines.
A presença e as vozes dos escravizados animam o texto, nomeadamente, em Le meunier, son fils et l’âne, um teatro linguístico e vernacular que protagonizam e que, embora semelhante ao de La Fontaine, revela um cenário e práticas linguísticas, discursivas e antropológicas claramente associadas ao mundo das plantações de Bourbon.
O nascimento do romance reunionense está também ligado a estes mundos. O primeiro, Les Marrons de Louis-Timagène Houat (1844), relata a violência inerente ao sistema das plantações, explicitamente, campos de trabalho, onde predominam o terror, a humilhação, a desumanização, o abuso e a tortura. Além disso, fala de miscigenação. As duas personagens principais, e não só, são marrons, o negro Frême e a companheira branca, Marie. O romance termina com uma revolta generalizada dos escravos que decidem coletivamente ir viver num espaço de marronnage.
Em 1847, Leconte de Lisle publicou Sacatove, a história de um marron que se apaixona por Marie, filha do antigo senhor, e a rapta. Inspirada em Bug-Jargal (Victor Hugo, 1826), a personagem corresponde ao que Léon-François Hoffmann definiu como a figura do «negro romântico» . Tal como Bug-Jargal, Sacatove é descrito como um ser cavalheiresco com sentimentos nobres, perdidamente apaixonado por Marie, a filha do seu senhor. A sua morte, igualmente infligida pelos seus senhores, põe término às semelhanças entre as duas personagens: Bug-Jargal é fuzilado pelo exército que lidera a luta contra os insurretos, enquanto Sacatove, desesperado com a recusa de Marie em amá-lo, se rende, sendo morto pelo irmão dela. O final da história, porém, fica em aberto. Ao regressar à propriedade paterna, Marie é imediatamente dada em casamento pelo pai e dá à luz uma criança que o narrador diz ser de pele branca como qualquer outra, dando a entender que Sacatove é o pai da criança. Enquanto o texto de Hugo mostra claramente a separação das raças, o texto de Leconte de Lisle deixa entrever a miscigenação como utopia para sair da escravatura.
Em 1848, Le courrier de Saint-Paul publicou Bourbon pittoresque de Eugène Dayot, um romance inacabado consagrado ao grande marronnage do século XVIII sob a perspetiva dos caçadores de marrons. O tom corresponde ao que foi descrito como «gótico haitiano» , ou seja, trata-se de uma descrição denegridora e negativa dos marrons, mas partilha do fio condutor comum a todos estes textos, apresentando as personagens brancas com uma postura melancólica sistémica associada ao contexto da plantação esclavagista e logicamente presente em todos os romances coloniais da Ilha da Reunião.
Mulato como Houat, Auguste Lacaussade retoma o tema dos marrons na sua coleção Poèmes et Paysages, de 1862. Já em Les Salaziennes (1839), a quinta peça da coletânea, Le lac des gouyaviers et le piton d’Anchaine, evoca a figura do marron Anchaing e louva a resistência e a liberdade a todo o custo.
O poema XVIII de Poèmes et Paysages, Une voix lointaine, é um violento ataque ao sistema de escravatura e à submissão que contrasta o esplendor da paisagem campestre de Bourbonnais com a situação dos escravizados.
No poema LXXIX (79), Le bengali, Lacaussade retrata uma personagem isolada na noite que, numa melodia melancólica, evoca tanto a sua situação servil como o tempo em que vivia livre na sua terra natal.
Em 1958, dando continuidade ao romance colonial, Claire Bosse publica Colonisation de l’île Bourbon ou l’idéal amour, que se apresenta como uma versão feliz, do ponto de vista dos senhores brancos, do romance de Dayot, publicado um século antes. A narrativa utiliza caracterizações «góticas», através de expressões como «selvagens absolutos» (p. 8), «hordas de bárbaros» (p. 9) e «lobos gananciosos» (p. 9). Em contrapartida, o narrador fala da «vida pacífica e sorridente dos habitantes civilizados do litoral», que gozam «a eterna primavera da ilha». Este texto, que marca a longa guerra entre duas utopias racializadas e de classes, a da soberania dos marrons nas montanhas e a dos senhores no litoral, propõe fundar a felicidade dos brancos num genocídio. A erradicação total do marronnage é apresentada como a condição para uma «felicidade sem nuvens», sendo a condição do Éden o massacre de todos os marrons. Esta é uma indicação clara de que os temas da escravatura e do marronnage na literatura são sempre abordados por via de um paradigma de guerra, um confronto que recomeça incessantemente.
Os romances de Marius-Ary Leblond assentam num estilo poético que pretende ser naturalista e não exótico. Embora a escravatura e o marronnage estejam ausentes dos seus romances e contos, a sua sombra não deixa de se insinuar. O romance mais marcado por esta presença/ausência é Ulysse Cafre. Histoire dorée d’un Noir, (1924). Os temas da deambulação, da filiação, da nomeação dos lugares e da língua fazem vir à tona as vozes, as presenças e as ações dos escravos e dos marrons. Certo dia, o cozinheiro da família do narrador, Ulysse deixa-os para ir procurar o filho que há muito perdeu de vista. No seu périplo pela ilha, encontra várias personagens, a uma das quais revela a sua genealogia e filiação, explicando a origem do nome do pai, Abel, que havia sido escravo.
Esta passagem mostra como a atribuição de nomes aos escravos os despoja dos nomes originais e das respetivas linhagens, desenraizando-os e marcando-os como posses do senhor, numa espécie de redobramento simbólico da marca de propriedade no corpo. O discurso de Ulysse sobre o nome do pai, porém, faz renascer o nome dado pela filiação, associado ao lugar de origem, que permanece na memória inconsciente da descendência. Este nome, Laouallé, regressado à memória e aos sonhos, assombra a narrativa de Ulysse e transforma a própria textura do romance. No conjunto do romance colonial, a aparente ausência de narrativas sobre a escravatura e o marronnage, faz delas, de certa forma, a origem de qualquer afirmação que procure descrever o lugar reunionense contemporâneo, bem como os processos da sua construção. Não obstante a tentativa do narrador de mostrar a assimilação e a integração (numa posição subalterna) do descendente de escravos nos valores da civilização branca e cristã, a viagem de Ulysse revela-se um marronnage contemporâneo ilustrado pela descoberta de lugares e práticas ocultas, secretas, subterrâneas, espaços de terapia e feitiçaria, o elogio de uma ocupação e gestão ecológica do mundo herdadas precisamente das práticas dos marrons.
Esta presença de marrons, e a ambiguidade da filiação, torna-se explícita no romance de Marguerite-Hélène Mahé, Sortilèges créoles. Eudora ou l’île enchantée (1952, 1955, 1985). Texto sobre o duplo, o carácter indecisivo das origens, o segredo de uma filiação atormentada e ambígua, bem como a reparação , o romance faz coincidir os inícios dos séculos XVIII e XX em Mahavel, meca do marronnage e dos seus vestígios, da feitiçaria, dos fantasmas e das almas errantes. É também um texto sobre Granmérkal e a sua ligação estrutural à escravatura e ao marronnage.
O romance narra a história de três mulheres, Sylvie de Kérouët, Kalla, a escrava que lhe era inteiramente dedicada e que foi morta pelo chefe dos marrons, Zélindor, e Eudora de Nadal, descendente de Sylvie, mas cuja filiação é indecisiva . Graças ao diário da sua antepassada, Eudora fica a conhecer a história entrelaçada de Sylvie e Kalla, que pagou com a própria vida a devoção à sua senhora e cujo corpo nunca foi encontrado. Esta ausência de sepultura faz de Kalla uma alma errante, Granmérkal, que aparece para anunciar aos De Nadal a morte iminente de um deles ou para os avisar de um perigo. Eudora, que acredita ser a reencarnação da sua antepassada, torna-se muito melancólica. Para se curar e se sentir legítima em Mahavel, em harmonia com o lugar e a sua história, tem de encontrar os restos mortais de Kalla e dar-lhe uma sepultura, o que acontece no final do romance.
Na fronteira entre os romances coloniais e pós-coloniais, a narrativa é ambígua: a sepultura de Kalla tem menos que ver com a atribuição de um espaço nesse lugar do que com a restituição da paz a Eudora e à sua linhagem, pacificando a propriedade dos senhores, mesmo que o reaparecimento dos restos mortais de Kalla contribua para o surgimento de uma outra História ou da História dos outros na memória, no discurso e no texto.
Foram os textos poéticos da segunda metade do século XX que se encarregaram explicitamente desta História.
O último verso de «pressentimento» na antologia Zamal (1951) de Jean Albany é: Bobre, bobre, instrument de musique créole. No romance colonial, «créole» significava «branco»; na obra de Albany, a palavra é integradora. Desde então, o bobre tornou-se um símbolo da cultura reunionense.
Bal Indigo, publicado em crioulo (1976), é mais explícito. «Capataz» evoca a violência e a tortura a que são submetidos os escravos e abre a perspetiva do fim do sistema esclavagista através de uma revolta generalizada liderada pelos marrons. Significativamente, no penúltimo verso, o artigo partitivo que precede «leite» e «mel» é escrito de acordo com a pronúncia atribuída ao escravo de origem africana, que o historiador crioulo Eugène Volcy Focard descreveu num artigo de 1884 como «crioulo de moçambique».
Monte Chemin Cormoran, com cerca de vinte páginas, evoca a figura da Senhora Desbassayns, a situação infernal dos seus escravos e o marronnage como destruição do sistema.
Tienbo le rein e Beaux visages cafrines sous la lampe de Alain Lorraine (1975), associam a história da Reunião ao exílio, à migração e à deportação, sendo a escravatura e o marronnage os fundamentos da ilha. Não é por acaso que o poema de abertura da antologia se intitula «Moçambique» e frisa a relação entre a memória e a resistência.
Contudo, o excelente texto que canta a epopeia dos marrons é Vali pour une reine morte, de Boris Gamaleya (1973), um longo poema-teatro que narra a história dos marrons através das figuras de Rahariane e Cimendef, cuja memória deve ser mantida viva para caracterizar e habitar uma ilha diferente da que resultou historicamente do tráfico de escravos, da escravatura e do colonialismo. O que o texto destaca, tanto na relação entre Rahariane e Cimendef como na oposição entre Cimendef e o caçador de marrons Mussard, ou Ombline Desbassyns, é não só a contradição entre habitar uma terra associada às plantações com mão de obra escrava e ao colonialismo, mas também o facto de essa terra ser habitável. Viver ali, em tal situação, torna-a de facto inabitável, pelo que se torna necessário habitá-la enquanto marron e articular plenamente a presença humana com outras presenças vegetais ou espirituais. É por isso que as terras altas, os morros, os picos, os cumes e as montanhas desempenham um papel tão importante no conjunto da poesia de Boris Gamaleya. Trata−se do espaço do marronnage em si, pouco acessível aos senhores das plantações e aos caçadores de marrons, mas sobretudo um espaço de soberania, liberdade e entrelaçamento do que é vivo, tanto seres humanos como não humanos. Para Gamaleya, o marronnage é o oposto da plantação. O espaço marron associa as palavras e os corpos às montanhas, às árvores e às plantas, reconstruindo os laços que se desatam porque atam. É por ser marronne que a natureza está no âmago da escrita de Gamaleya: ela é a memória marronne que permite que as temporalidades se entrelacem e o infinito renascimento na história do marronnage, da liberdade das línguas, da linguagem, dos discursos, das vozes e dos sujeitos que deixaram de estar encerrados em identidades arrepiantes.
No único número da revista cultural Lansiv (1984), os autores de um artigo sobre a literatura reunionense contemporânea descrevem a obra de Boris Gamaleya como um prefácio à literatura da Reunião. Não querendo limitar a enorme produção do autor a esta qualificação, é evidente que o lugar central atribuído ao marronnage esteve na origem de uma produção poética de grande riqueza no final do século XX e início do século XXI, nomeadamente, na música e, de forma singular, nos nomes e textos das inúmeras bandas de Maloya .