Em 1983, Boris Gamaleya publicou Le Volcan à l’Envers ou Madame Desbassyns, le Diable et le Bondieu (O Vulcão às Avessas ou Madame Desbassyns, Deus e o Diabo) (ASPRED, Saint-Leu, 1983). Esta peça de teatro marca tanto um prolongamento como um ponto de viragem na obra do autor.
Um prolongamento, porque o potencial dramático e dramatúrgico das duas coleções de poemas anteriores, Vali Pour une Reine Morte (Vali por uma rainha morta) (REI, Saint-André, 1973) e La Mer et la Mémoire – Les Langues du Magma (O Mar e a Memória – As Línguas do Magma) (Imprimerie AGM, Saint-Denis, 1978), é reiterado e sistematizado numa estrutura teatral que segue as regras.
De facto, os diálogos que pontuam estas primeiras obras possuem uma respiração dramática, por vezes com duetos de amor de um intenso lirismo (Rahariane e Cimendef, Anissia e Sangolo), outras vezes com confrontos de um alto conteúdo agonístico entre marrons (Cimendef, Anchain) e caçadores de marrons (Mussard, Bronchard).
Além disso, há uma estrutura dramatúrgica que sustenta em profundidade os dois textos, aliando o ritual à iniciação – em Vali Pour une Reine Morte, uma longa litania de complicações, seguida de uma queda da qual é necessário reerguer-se: “caio/a memória queimada do leite das tuas eufórbias”; ou configurando as lutas contemporâneas inspiradas num profundo conhecimento das lutas passadas – na segunda coleção, uma obra dupla, tudo se concentra inicialmente na figura de um “homem que recorda as suas possibilidades devastadas”, “que cai e se levanta/no clamor incansável/da história”, para depois dinamizar as lutas atuais, homenageando os militantes caídos sob os golpes dos bandidos (“basta que pronuncie um nome, François Coupou”, “basta que pronuncie um nome, Eliard Laude”, “basta que pronuncie um nome, Rico Carpaye”), e sobretudo através da projeção, através de palavras que se tornam “aves de uma nova prática”, de um “grito irrefutável”: “a história é a vida que aos poucos triunfa e não só os nossos mortos//a luta continua”.
Ponto de viragem, na medida em que, doravante, à semelhança do mar que lhe proporciona um modelo precioso, porque para ele o mar é “síntese para além do homem”, Boris Gamaleya empenha-se em estabelecer na sua obra estruturas dialéticas complexas que visam instaurar “uma estranha síntese”, na superação deliberada de todos os impasses da história que as diversas oposições binárias (entre os géneros, entre as classes, entre os povos e assim por diante) nos impõem.
Como tal, o prefácio de Gilbert Aubry é extremamente útil para compreender estes novos desafios, especialmente quando estabelece um paralelo entre Boris Gamaleya e Ernst Bloch e o seu “princípio da esperança”: “O espiritual reaparece no campo materialista da praxis. Não como uma quimera, mas como uma dinâmica cultural que passa para o primeiro plano, atrai e cativa, permanecendo, no entanto inacessível e fugaz. Este é o “Princípio da Esperança”, um pouco como a imagem da estátua que enfeitiça o escultor e o absorve na realização da sua escultura. É isto “o que está perante nós, em que tanto o âmago do Homem como o da Natureza, de uma forma utópica, alcança – ou não consegue alcançar – a sua realização final”. (E. Bloch)”
Aliás, o próprio Boris Gamaleya inscreveu estas frases no prólogo do seu livro: “Este é o livro da Reunião graças ao qual poderá ver Deus durante a sua vida, assim como o inferno e o purgatório, sem ter de passar pela sua própria morte. (Segundo uma apresentação do liber secretus, cf. E. Bloch, O Princípio da Esperança).”
Com Le Volcan à l’Envers ou Madame Desbassyns, le Diable et le Bondieu, através da sua obra futura, Gamaleya apresenta-se como um Dante reunionense ao escrever uma comédia divina genuinamente crioula, baseada na “estranha síntese”, em constante evolução rumo à sua potencial “realização final”, entre o pensamento marxista e a espiritualidade cristã, mas também entre a criança e o homem que envelhece: “Adeus minhas origens/ reinventei tudo”, “que eu me entregue a ti/inalienável/reconstrói em mim esta ilha//A INFÂNCIA CONTINUA”.
Em 1998, este livro foi novamente publicado, acrescido pelo Oratório de 1998, que dele emana (Océan Éditions, 1998), uma vez que o cristaliza e aperfeiçoa: “pela Via do abismo aberto/de ambos os lados/de reino em reino/pahoé ohé o/nada é como antes/nada exceto esta cruz”. O texto do oratório é o libreto que Boris Gamaleya devia fornecer a Ahmed Essyad no âmbito de uma encomenda do Estado por ocasião das comemorações do 150.º aniversário da abolição da escravatura.
Entre estas duas datas, foram publicados quatro grandes livros: Le Fanjan des Pensées – Zanaar entre les coqs (Imprimerie AGM, Saint-Denis, 1987), no qual Gamaleya envereda deliberadamente por uma viragem espiritual inspirado tanto nos grandes místicos da história, como em Jean-Joseph Rabearivelo e nas tradições ancestrais do oceano Índico; Piton la Nuit (Éditions du tramail/ILA, Saint-Denis, 1992), onde a montanha sagrada e a noite escura tematizam esta elevada aspiração, na procura de “coincidências do todo aberto”; Lady Sterne au Grand Sud (Azalées Éditions, Saint-Denis, 1995), onde o amor das mulheres, o amor da ilha, o amor à liberdade, o amor à música, o amor ao poema e o amor às elevações do espírito, formam um todo radiante; L’Île du Tsarévitch (Azalées Éditions, Saint-André, 1997), roème, ou seja, romance-poema, onde o relato transfigurado da vida do pai permite a Boris Gamaleya entrelaçar, com um extraordinário domínio, todos os temas anteriormente tratados, como se fosse questão de os juntar num formidável fogo de artifício que marca não só o fim de um ciclo, mas também o renascimento da obra rumo a novos caminhos altamente prometedores.
É à luz desta jornada criativa que devemos compreender a especificidade e a importância do Oratório de 1998.
Em 1998, por ocasião do 150.º aniversário da abolição da escravatura na Reunião, uma encomenda por parte do Estado reúne dois criadores com personalidades fortes, o reunionense Boris Gamaleya e o marroquino Ahmed Essyad. Coube ao primeiro escrever o libreto de um oratório cuja música foi da autoria do segundo.
Catherine Trautmann, Ministra da Cultura, escreveu: “Esta encomenda foi confiada a dois artistas, Ahmed Essyad e Boris Gamaleya, que, cada um à sua maneira, celebram no conjunto da sua obra a diversidade de culturas, a liberdade do indivíduo.” Acrescentando: “regozijo-me particularmente pelo encontro destes dois talentos: Ahmed Essyad, o compositor, indiscutível transmissor do melhor da tradição oral no coração da música mais escrita… Boris Gamaleya, o poeta, pioneiro e ativista de uma crioulidade aberta ao universal cuja peça Le Volcan à l’Envers se tornou símbolo e referência na Reunião.”
Com vista a tornar a sua colaboração o mais frutuosa possível, Ahmed Essyad permaneceu na ilha. O encontro foi caloroso e as sessões de trabalho correram bem, não obstante alguns mal-entendidos que os dois homens se empenharam em ultrapassar. Permanece um ponto de discordância: Boris Gamaleya teria gostado que o seu oratório comum desse a ouvir com mais clareza os ecos da música dos antigos escravos; Ahmed Essyad, por seu lado, permanece intransigente: a sua música, com um estilo exigente e singular, baseada em transfigurações tanto eruditas como sensíveis, com características distintas retiradas da música tradicional não só do seu país mas de todo o mundo, acomodar-se-ia com dificuldade a “citações” textuais de maloyas inseridos no corpo da obra por colagem ou por processos de integração mais subtis. Boris Gamaleya, um melómano informado, teria preferido uma obra mais próxima, por exemplo, da de Luciano Berio com as suas Folksongs, ou seja, uma realização pós-moderna que resultasse num patchwork musical capaz de transmitir “a estranha síntese”. Ahmed Essyad, a quem a beleza magmática e metamórfica da linguagem gamaleyesca fascinava, não cedeu: resolutamente moderna, a sua música é também uma fusão incandescente, na qual os elementos retirados da música tradicional se fundem sem serem sempre reconhecíveis como tal. As discussões entre os dois criadores eram apaixonadas, chegando a formar uma controvérsia exemplar, da qual infelizmente restam apenas alguns excertos ou vestígios. O poeta mencionou-o evasivamente, ao passo que o compositor nada disse sobre isso.
Todavia, alguns anos antes (1991-1994), Essyad tinha composto uma ópera “leve”, L’exercice de l’Amour, com base num libreto de Bernard Noël, com o qual colaborou novamente logo de seguida noutra ópera, Héloïse et Abélard (2000). Estamos perante obras que possuem um conteúdo espiritual, em que a sua inclinação para o Sufismo se alia na perfeição com a teologia negativa da tradição medieval ocidental, revisitada com paixão por Bernard Noël. No tocante à elevação do espírito, Essyad e Gamaleya reconhecem serem animados por aspirações semelhantes. Podemos afirmar que noutras ocasiões, o compositor proferiu palavras que poderiam muito bem ser atribuídas ao poeta: “uma síntese cultural que não coloca o pensamento dos homens em primeiro plano, que não enriquece o presente com uma nova experiência, não pode dar azo ao duplo espanto, de continente a continente, neste território onde o ser humano pode finalmente perder-se.” De continente a continente, ou de ilha em ilha… Gamaleya entende que o seu libreto deve ser a quintessência do trabalho que orientaria definitivamente em profundidade a sua obra em direção “aos serviços eufóricos da superação”, tal como declara no seu “Prefácio” do Oratório de 1998.
Assim, este libreto, intitulado Ombline ou Le Volcan à l’Envers, é uma versão abreviada ou até transfigurada. Fundado no “vaivém de um espaço imaginário infinito, no marronnage implícito e contínuo rumo a um futuro baseado nem em verdades nem em mentiras”, foi concebido para resolver “as diferenças”, antes de mais entre os marrons e os proprietários de escravos, “numa participação festiva na síntese, a obra insular finalmente aberta ao universal.”
Pierre Gervasoni proporciona-nos um resumo eficaz: a história, “situada no Volcan de la Fournaise onde muitos escravos fugitivos se refugiaram, divide-se em quatro partes de comprimento desigual. A primeira retrata várias figuras (Simangavole, Matouté, Sankoutou) relacionadas com as crenças dos reinos marrons. A segunda narra, de maneira elíptica, o destino de dois amantes (Sarah e Sinacane) no além ardente. A terceira descreve o aparecimento de Ombline Desbassyns, uma esclavagista devota mas impiedosa, convidada a ter ideias mais abertas no mundo dos mortos do que no dos vivos. A quarta deleita-se, finalmente, com a esperada conversão da aristocrata, louvando o fruto da sua união consumada com Sankoutou num vulcão que se tornou o paraíso.”
Cada parte começa com a intervenção de um narrador, a primeira com estas palavras: “Finalmente, podemos ser/tudo isto.” Esta reivindicação de uma pluralidade de seres baseia-se numa evocação da Plaine des Sables, nos arredores do Piton de la Fournaise, uma espécie de pequeno deserto, um lugar propício à ascese que predispõe necessariamente ao verdadeiro acesso à euforia da superação: “o vento gelado”, com a sua procissão de “vozes de fundo”, cria uma estrutura que murmura ressonâncias e ecos que desencadeiam a propagação, “de chama em chama” e “de ponta a ponta”, de uma vibração que une tudo no seu caminho: “ecos kolokolok – magma escarlate”, “marulhar no berço das conchas”, “grãos de flauta encantados pelas veias da água”…
A segunda parte é a evocação da respiração de tudo com tudo através do casal exemplar composto pelos marrons Sarah e Sinacane. Gamaleya transforma um termo de vulcanologia originário do havaiano (pahoehoe: “rio de cetim”), que designa uma lava muito fluida – como a do vulcão da Reunião –, numa onomatopeia que retrata tanto os assobios mordazes do magma basáltico descendo as encostas, como uma espécie de apelo à união das diversidades: “Pahoé o Pahoé oé oé é”… E Sarah em êxtase com o surgimento de uma harmonia generalizada: “Ouço uma orquestra tomar ao céu todo o ouro da noite”…
No início da terceira parte, a mais desenvolvida por ser a mais crucial, o vulcão é definido pelo narrador como “cratera de embriaguez”, e pelo coro como “concha anunciadora do Outro Reino!” Ombline, após a sua morte, chega ao vulcão, reino dos marrons, onde “cai sobre [as suas] estranhas negações”… O seu primeiro reflexo está em conformidade com a sua classe e a sua história: “Venham a mim os meus mosqueteiros! Aniquilem este lugar de indisciplina!” Porém, Sankoutou tem “um melhor papel a oferecer[-lhe]!”: “Ou te juntas à nossa festa – ou voltas para ao teu leito pútrido”… Trata-se de sair do determinismo histórico repleto de ruído, fúria e ressentimento, para aceder ao “tesouro jubilante” realizado pelas “sínteses/puro pensamento do todo”… Sankoutou argumenta e finalmente convence Ombline: “Não há outra história que não a do verbo que te chama. Entre a morte e a tua imagem recalibrada, a escolha é evidente para uma alma para sempre livre… Nenhum futuro de tirania a ameaça. Recomecemos de uma forma diferente! A respiração de tudo com tudo é, desde logo, animada pelos “magmas de todos os sopros!”, e Ombline rende-se (“despoja-me deste peso”), exclamando: “Terra em cima! Céu em baixo!” A síntese está em andamento e o vulcão às avessas.
O epílogo, constituído pela quarta e muito curta parte, entoa a “colheita de epifanias” agora possível porque os “enxames ciclónicos” da história consumiram “a sua violência”, e assim, emergimos de um “caos de falsidade” para caminhar em direção à “Via do abismo aberto de ambos os lados”…