O tráfico de escravos

A origem dos escravos de Bourbon

Qual era a origem dos escravos de Bourbon?
Autor
Jean-Marie DESPORT

Historiador


Qual era a origem dos escravos de Bourbon?

Atualmente considerado como um insulto à civilização e qualificado como um «crime contra a humanidade» por muitos Estados1, chocando algumas boas almas já na Idade Moderna2, a prática do comércio de escravos era filha do seu tempo. Este comércio chegando a ser praticado em nome do rei, este comércio abençoado pela Igreja3, constituiu no século XVIII uma força motriz da economia, em Bourbon como em qualquer outro lugar4.

O tráfico de escravos em Bourbon começou pouco depois do início da colonização permanente da ilha5, numa altura em que os europeus já enviavam escravos para a América há mais de um século e meio6. Os escravos eram oriundos de uma grande variedade de regiões, tal era a necessidade de mão de obra7 : às contribuições secundárias resultantes do comércio ao longo da rota para a Índia, logo se acrescentou um tráfico de escravos regional, que rapidamente se tornou essencial, sendo que Madagáscar e a costa oriental de África forneciam a grande maioria dos escravos de Bourbon no século XVIII.

Aurore, navio de escravos de 1784. 1998.
Coleção Museu Villèle

Ao longo da rota da Índia

A partir da África Ocidental

O comércio de escravos da costa ocidental de África para Bourbon no século XVIII

A partir de 1702, alguns escravos vindos aleatoriamente da África Ocidental foram ocasionalmente trocados8 por navios «interlopes» 9 (contrabandistas), e depois vendidos em Bourbon; o número destes escravos era então irrisório10.
Embora os considerasse «excessivamente caros», a Companhia das Índias francesa mandou então transportar africanos ocidentais para Bourbon: 200 escravos vindos de Ajudá11 em 1729, 76 e 188 escravos da Goreia12 em 1730 e 1731 respetivamente .

 

Comerciante de escravos de Goreia. Labrousse. 1796.
Coleção Museu Villèle

Este tráfico, proibido em 1731, foi novamente autorizado em 1737 por Mahé de La Bourdonnais13 tendo sido parcialmente retomado de 1739 a 1744.
De seguida, as importações regulares cessaram, e isto apesar dos múltiplos pedidos dos administradores de Bourbon: os últimos africanos ocidentais chegaram a Bourbon em 1767.

A partir da Índia

O comércio de escravos da Índia para Bourbon nos séculos XVII e XVIII

A partir do final do século XVII, os escravos foram por vezes também trazidos da Índia em navios que regressavam à metrópole14 . As chegadas tornaram-se mais abundantes a partir de 1728; Pierre-Benoît Dumas15 foi para Pondicheri16 em 1729, onde testemunhou o recrutamento de escravos. Interrompido de 1731 a 1734, o comércio foi retomado sob Mahé de La Bourdonnais, sendo que centenas de escravos chegaram a Bourbon vindos de Pondicheri. Após 1767, alguns «tratantes»17 de Bourbon tinham correspondentes em Pondicheri e Chandernagor18, enviando navios de escravos de Bourbon para Goa.

Todavia, as guerras entre a França e a Grã-Bretanha19 infligiram um golpe quase fatal a este tráfico: no final do século XVIII, era apenas ocasional. No entanto, a sua memória serviu de referência para a contratação20 de mão de obra barata em meados do século XIX.

A partir de Madagáscar

O comércio de escravos de Madagáscar para Bourbon no século XVIII

As condições do comércio de escravos malgaxe

Madagáscar foi muito cedo uma fonte de comércio de escravos: já no século X, e talvez mesmo antes, os Muçulmanos faziam o aprovisionamento de escravos nesse território; bem como os Portugueses no século XVI, e os Holandeses e os Ingleses no século XVII. Entre 1685 e 1726, os piratas estabelecidos no norte da Ilha Grande forneceram escravos ocasionalmente a Bourbon.
Ensejando por desenvolver Bourbon, a Companhia das Índias francesa assumiu este tráfico em 1717: Madagáscar, que era supostamente território francês, era a fonte de escravos mais próxima de Bourbon.
Com as convulsões revolucionárias, os regulamentos comerciais foram substituídos por legislação política. Restringido de 1789 a 1794, proibido de 1794 a 1802, depois novamente autorizado, este comércio foi interrompido pelas intervenções britânicas em Madagáscar (1810-1811).

Três lugares de comércio de escravos sucessivos

Num relatório endereçado aos diretores da Companhia em 1681, o ex-comandante Régnault21 recomendava o aprovisionamento de escravos malgaxes noutro lugar que não no sul da Grande Ilha.

No século XVIII, o norte da costa oriental de Madagáscar serviu de verdadeira «reserva de caça» para as Mascarenhas; dotado de excelentes ancoradouros, oferecia importantes recursos humanos: os Betsimisarakas, os «cafres» 22 que, após terem atravessado a ilha pé, foram desembarcar no noroeste da mesma, e por fim os Merinas.
Assim, de 1720 a 1735, a maioria dos escravos malgaxes de Bourbon provinham de Antongil; porém, devido à profusão de escravos trazidos dessa região, os efetivos escassearam em meados do século XVIII.

Em 1758, Foulpointe tornou-se o centro oficial do comércio de escravos, onde se fundou um posto sumariamente dotado de lojas, uma casa de negros, cubatas e barracões. O declínio de Foulpointe ocorreu em 1791, quando o rei Yavi23. morreu. Em 1797, os britânicos destruíram a paliçada do posto de comércio; o tráfico de escravos foi então reduzido a algumas cabeças.

A predominância de Tamatave, até então um local de comércio de escravos secundário, começou entre 1798 e 1801. Embora Tamatave não oferecesse mais do que um perigoso ancoradouro como porto de abrigo, e os terrenos pantanosos causassem por vezes febres, tratava-se do ponto de chegada ao mar dos escravos Merina, vindos das terras altas. Em 1807, o capitão geral dos estabelecimentos franceses no Oceano Índico, Decaen, designou o principal agente comercial cuja autoridade ia «da baía de Antongil até Mananzary (Mananjary)». Tamatave, contudo, nunca teve a mesma importância que Foulpointe. Além disso, a partir de 1811, os britânicos forçaram os franceses a evacuar os seus entrepostos malgaxes.

A partir da costa oriental de África

O comércio de escravos da costa oriental de África para Bourbon no século XVIII

Primeiro, a partir de Moçambique

Mapa da baía de Moçambique. Jacques-Nicolas Bellin. Por volta de 1750.
Coleção Museu Villèle

Assim que Colbert criou a Companhia francesa para o comércio das Índias orientais (1664), os seus diretores começaram a interessar-se pela costa oriental de África. Todavia, devido à falta de recursos, nenhuma expedição foi empreendida para esta região ainda pouco conhecida. De tempos a tempos, os marinheiros portugueses vendiam alguns escravos da África Oriental aos colonos de Bourbon24.
Em 1721, o vice-rei da Índia portuguesa25 foi obrigado a arribar em Saint-Denis, vítima de piratas26, sendo repatriado para Portugal por um navio da Companhia das Índias. Em agradecimento, prometeu escrever às autoridades de Moçambique, a fim de facilitar o comércio de escravos para Bourbon. No entanto, a primeira troca revelou-se uma deceção devido à pesada perda de vidas durante a viagem.

Mahé de La Bourdonnais foi responsável pelo comércio de escravos sistemático realizado entre Moçambique e Bourbon: todos os anos, duas expedições forneciam várias centenas de escravos. Proibido de 1746 a 1750, este tráfico foi retomado no final da era da Companhia27, aproveitando cumplicidades no seio da administração portuguesa, a quem, todavia, incumbia reservar o envio dos Negros de Moçambique para o Brasil. As fontes do comércio de escravos deslocaram-se então para norte: Sofala e Moçambique foram abandonados a favor das ilhas Quirimbas, à medida que os entrepostos muçulmanos começavam a ser frequentados.

África Oriental, a principal fonte de escravos para Bourbon

Caravana de escravos. Em «Aventures de six français aux colonies». Gaston Bonnefont. 1890.
Coleção Museu Villèle

A costa oriental de África superou quantitativamente Madagáscar desde os últimos anos da Companhia, e no início do período real, o número de «cafres» desembarcados nas Mascarenhas já era cinco vezes superior ao dos malgaxes.

Nas possessões portuguesas, o tráfico era alimentado pelos Yao que vendiam no litoral aqueles que tinham capturado na região interior do lago Niassa28.

De Cabo Delgado ao Golfo de Aden, a costa africana estava teoricamente sob a suserania do sultão de Mascate; de facto, os poderes locais eram praticamente independentes29, o que tornava este comércio incerto. O tráfico desse território para Bourbon começou em 1754, tornou-se regular após o fim do monopólio da Companhia, e atingiu o seu auge por volta de 1785-1790, período durante o qual os escravos eram mais baratos do que em Moçambique. Difícil de localizar (em muitos casos, dizia-se que os navios vinham da «costa de África» sem qualquer outra precisão), este comércio era realizado nos vários entrepostos comerciais muçulmanos que ponteavam as costas das atuais Tanzânia, Quénia e Somália, desde Lindi no sul até Mogadíscio no norte, com Quiloa como centro principal entre 1770 e 1794, e depois Zanzibar a partir de 1802.

O mercado de escravos em Zanzibar. Emile Bayard.
Coleção Museu Villèle

O comércio de escravos clandestino do século XIX

No início do século XIX, Bourbon voltou-se para a economia do açúcar30, uma cultura e indústria devoradoras de escravos31, no preciso momento em que o comércio de escravos era proibido e a escravatura ameaçada.

A 8 de janeiro de 1817, Luís XVIII decretou a proibição do comércio de escravos; Bourbon já não podia opor-se abertamente à sua metrópole32, já que este decreto foi registado a 27 de julho de 1817. Porém, confrontado com o medo obsessivo da falta de mão de obra, Bourbon passou à clandestinidade33 sendo que cerca de 50 000 novos escravos foram trazidos ilegalmente para a ilha, a grande maioria deles entre 1817 e 183134.

O início da luta contra o tráfico de escravos (1817-1825)

A partir de 1817, foram levados a tribunal casos de tráfico de escravos. Embora o Governador Milius35 tenha feito de Bourbon a colónia francesa onde as detenções por tráfico de escravos eram as mais consideráveis, e implementado, com as autoridades das Maurícias, uma coordenação de luta contra os traficantes de escravos36, os magistrados de Bourbon raramente os condenavam37.

O estabelecimento de uma infração de tráfico de escravos não era fácil. Era necessário identificar os navios, sendo que quando eram utilizados no tráfico de escravos, eram muitas vezes anónimos. A inspeção de um navio antes do carregamento de cativos ou depois de os descarregar era de pouca utilidade e surpreender um esclavagista no mar podia fazer com que o capitão atirasse a sua carga humana borda fora. Deter um traficante de escravos só era possível no momento exato da entrega38 ; contudo os traficantes operavam de preferência à noite, em locais pouco vigiados por serem perigosos

Comerciantes de escravos árabes a lançarem escravos borda fora para evitarem a detenção. Século XIX.
Coleção Museu Villèle

A busca de novos escravos na ilha provocou a indignação dos colonos: segundo eles, tratava-se de perseguir os habitantes, de entravar o trabalho, de instigar sobremaneira um espírito de revolta entre os escravos.

O tempo da hesitação (1826-1831)

Michel Eusèbe Mathias Betting de Lancastel, diretor-geral do Ministério do interior desde outubro de 1826, tentou impedir o tráfico. Por outro lado, o governador de Cheffontaines39 foi muito menos atento a esta matéria.
A opinião pública era esmagadoramente a favor do tráfico. A população branca viu nisso uma forma de realizar uma espécie de «façanha», desafiando o aparelho do Estado, realizando operações financeiras altamente lucrativas e assegurando o funcionamento económico da ilha.

As desvantagens do tráfico eram, no entanto, cada vez mais evidentes. Eram de foro político: a autoridade da administração estava comprometida em Bourbon; o fosso entre a metrópole e a sua colónia estava a aumentar; a pressão diplomática do Reino Unido sobre a França também40. Eram de foro sanitário: a ausência de quarentena à chegada era prejudicial para os novos escravos, e mesmo para toda a população da ilha41. Eram de foro moral: o tráfico tinha-se tornado ainda mais atroz ao tornar-se clandestino. A bordo de navios mais pequenos, a sobrelotação era indescritível42 enquanto todas as conveniências suscetíveis de trair a natureza humana da carga tinham desaparecido ;

Barco de escravos, corte teórico, para mostrar o amontoamento de escravos infelizes agachados e escondidos entre os soalhos. Em «La traite des nègres et la croisade africaine comprenant la Lettre Encyclique de Léon XIII sur l’esclavage, le discours du Cardinal Lavigerie à Paris,….» Alexis-Marie Gochet. 1889.
Coleção Museu Villèle

a taxa de mortalidade dos cativos aumentou tanto no mar como à chegada, devido a afogamentos provocados por transbordos noturnos apressados. Tudo isto alimentou as campanhas dos abolicionistas em França metropolitana.

A extinção de um comércio agora seriamente reprimido (1831- ?)

Com a Monarquia de julho, o comércio já não era considerado um crime, mas sim um delito. A lei de 4 de março de 1831, promulgada em Bourbon a 26 de julho, previa, para além da apreensão do navio e da sua carga, pesadas penas de prisão ou trabalhos forçados para oficiais, tripulações, armadores e seguradores de navios escravos, bem como a prisão de vendedores, recetores e compradores de novos escravos

Em Bourbon, a última condenação por tráfico (a trigésima desde 1818) teve lugar em 1832.
Todavia, isto também pode significar que o comércio era apenas mais bem ocultado43. A diminuição demasiado lenta do número de escravos após 1831 indica que um tráfico residual já durava há anos. Segundo Hubert Gerbeau, cerca de 4500 escravos foram desembarcados clandestinamente em Bourbon entre 1832 e 1835; Hai Quang Ho estima que no período 1836-1847 houve cerca de 5000 introduções ilegais, e foram relatadas formas de tráfico na Reunião depois de 1848.

Bourbon não carecia de fornecedores para o comércio de escravos clandestino do século XIX. Segundo Serge Daget, entre 1815 e 1832, 43% dos novos escravos de Bourbon cuja origem pôde ser estabelecida provinham da costa oriental de África (25% de Zanzibar), 36% de Madagáscar (principalmente Tamatave), 15% da costa ocidental de África (mais precisamente de Bonny, na região do Delta do Níger) e 6% da região do Cabo.

Desde o século VII, o tráfico de escravos (da África ocidental, oriental e interior) transformou mais de 40 milhões de seres humanos em mercadoria, sendo que ainda são praticadas formas residuais de tráfico no mundo muçulmano.

O tráfico de Bourbon representa, portanto, apenas uma ínfima parte em termos quantitativos. Por outro lado, este mesmo tráfico foi um dos principais motores do crescimento demográfico da ilha. E a grande diversidade das origens geográficas dos escravos de Bourbon, herança de um passado doloroso, é obviamente um dos fatores da importante riqueza étnica da atual população da Reunião44.

Notas
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Autor
Jean-Marie DESPORT

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