O tráfico de escravos

O tráfico de escravos no oceano Índico

O tráfico de escravos no oceano Índico ocidental na segunda metade do século XIX
Autor
Raphaël CHERIAU

Historiador
Investigador associado em Mésopolhis (IEP d’Aix, AMU, CNRS), Centre for War Studies (University College Dublin), Centre Roland Mousnier (Paris Sorbonne)


O tráfico de escravos no oceano Índico ocidental na segunda metade do século XIX

Em 1881, o «Djamila», um navio com pavilhão francês, foi capturado com 94 escravos a bordo pela marinha britânica ao largo de Zanzibar, na costa oriental de África. Os documentos apresentados pelo capitão aos oficiais de Sua Majestade estavam em ordem. O «Djamila» arvorava legalmente as cores da bandeira de França. Estes documentos foram obtidos em Maiote, território francês desde 1841. É possível que o navio se dirigisse à Reunião, às Comores ou a Madagáscar . O capitão e o armador do navio eram oriundos de Maiote e de Nossi-Bé respetivamente. Nos termos dos acordos confidenciais franco-britânicos de 1867 sobre o direito de visita aos navios envolvidos no tráfico de escravos, a embarcação, a tripulação e os escravos foram rapidamente confiados ao capitão do navio «Laclocheterie» que fazia parte da esquadra da estação naval francesa no oceano Índico e era responsável, entre outras missões, pela proibição do tráfico de escravos. O capitão e o proprietário do Djamila foram levados para a ilha da Reunião e condenados pelo Tribunal Correcional de Saint-Denis a dois anos de prisão e a uma multa de 50 francos. O navio foi queimado e os escravos «libertados», tendo hipoteticamente sido acolhidos por uma missão religiosa ou recrutados como «trabalhadores contratados» numa das plantações da ilha . O mistério permanece enterrado no silêncio dos arquivos.

Longe de ser um caso isolado e irrisório, esta ocorrência, revelada por fontes parlamentares britânicas, é uma prova de que do tráfico de escravos no oceano Índico ocidental continuava a vigorar durante a segunda metade do século XIX e recorda que os navios franceses desempenharam um papel importante, embora não exclusivo, como sugerido por Londres, na prossecução desse tráfico. Por último, sublinha as tentativas, por vezes bem sucedidas, das autoridades francesas e britânicas para o proibir.

O oceano Índico ocidental: importante palco de um tráfico de escravos desconhecido

Graças ao trabalho dos historiadores, é atualmente possível estimar que mais de 12 milhões de seres humanos tenham sido deportados devido ao tráfico atlântico de escravos entre os séculos XV e XIX .Não obstante a abolição do tráfico de escravos pela Grã-Bretanha (1807), pelos Estados Unidos (1808) e pela França (1817), o tráfico continuou a prosperar vigorosamente no século XIX, calculando-se que cerca de 3,9 milhões de pessoas dele tenham sido vítimas entre 1800 e 1866 . Este tráfico, de carácter e dimensão excecionais na história da humanidade, desapareceu progressivamente após a Guerra Civil Americana (1861-1865) e a abolição da escravatura no Brasil (1888). Todavia, no momento em que o tráfico de escravos no atlântico entrava no seu crepúsculo, o tráfico de escravos no oceano Índico ocidental atingia o seu apogeu entre 1860 e 1890 .

Pese embora a sua importância, este tráfico permaneceu durante muito tempo desconhecido. Esta lacuna tem vindo a ser progressivamente preenchida graças à investigação efetuada por historiadores de todos os horizontes ao longo dos últimos quarenta anos . A falta de conhecimento relativamente a este tráfico deve-se, em parte, aos parcos arquivos que deixou no seu rasto. Ao contrário do tráfico do Atlântico, é quase impossível estimar com exatidão o número de homens, mulheres e crianças que dele foram vítimas.

Porém, os investigadores consideram algumas ordens de grandeza, distinguindo três grandes epicentros na costa oriental do continente: o Corno de África, a África Oriental e o Canal de Moçambique. Relativamente à África Oriental, que é a zona mais conhecida, os investigadores pensam que cerca de 100 000 pessoas foram alvo do tráfico no século XVII e quase 400 000 no século XVIII . Estima-se que entre 800 000 e mais de dois milhões de mulheres, homens e crianças foram também alvo de tráfico no século XIX . Durante este último período, quase metade deles foram deportados para a costa da África Oriental, enquanto os outros enfrentaram a terrível viagem rumo ao Mar Vermelho, à Arábia, ao Golfo Pérsico, à Índia Ocidental, às Comores, a Madagáscar, à Reunião, às Maurícias e às Seychelles. Pensa-se que somente os traficantes europeus, mais bem documentados pelos arquivos, tenham arrancado entre 950 000 e 1,2 milhões de pessoas da África Oriental entre 1500 e 1850 . Entre o final da década de 1850 e 1873, cerca de 15 000 a 20 000 africanos eram capturados anualmente no continente e transportados para Zanzibar para serem vendidos por traficantes, na sua maioria suaílis ou oriundos do mundo árabe e persa .

85% dos quais se destinavam às plantações do arquipélago ou da costa, ao passo que os restantes 15% faziam a travessia para o Golfo Pérsico ou para a Arábia . Já no tocante ao Canal de Moçambique, supõe-se que mais de 437 200 escravos foram levados para Madagáscar entre 1800 e 1865 . No Corno de África, o tráfico «atingiu o seu auge» entre 1825 e 1850 (150 000 a 175 000 indivíduos), perfazendo um total de 500 000 pessoas durante todo o século. Nas ilhas Mascarenhas, estima-se que 200 000 seres humanos tenham sido vítimas de tráfico no século XIX .

Por último, é de notar que «no total, tendo em conta outras regiões [Índia e Sudeste Asiático] e os escravos não africanos, o número acumulado de seres humanos vítimas de tráfico no espaço marítimo do oceano Índico ao longo dos séculos [desde a Antiguidade até ao século XIX] ultrapassa largamente os 10 a 12 milhões de escravos desembarcados nas Américas» .

«O Oceano Índico não é o Atlântico» 

O tráfico atlântico de escravos e o tráfico de escravos no oceano Índico são dois fenómenos muito distintos. Antes de mais, os primórdios deste último remontam à Antiguidade . Além disso, durante a segunda metade do século XIX, o tráfico de escravos não era exclusivo, pelo que os navios não estavam especificamente armados para este comércio, como acontecia no Atlântico. Esta é uma das razões pelas quais as marinhas britânica e francesa, após terem enveredado pela via da abolição, tiveram tanta dificuldade em combater o tráfico, sendo amiúde difícil identificar um traficante. Poucos eram os navios que transportavam grandes quantidades de escravos, havendo uma média de 25 escravos a bordo dos navios na costa oriental de África nas décadas de 1860 e 1870 . Neste sentido, o caso do Djamila é uma exceção. Não era fácil distinguir os escravos do resto da tripulação porque, em geral, não se encontravam acorrentados ao fundo do porão, contrariamente à imagem veiculada na Europa da época. Se tal acontecia, era raro.

Por último, embora o tráfico no oceano Índico ocidental tenha sido dominado por marinheiros europeus e respetivos navios durante a primeira metade do século XIX, sobretudo franceses, a segunda metade do século foi marcada pela preponderância de navios com tripulações suaílis e proprietários de Zanzibar, Omã, Arábia, Golfo Pérsico ou Índia ocidental. Na maior parte das vezes, estes traficantes navegavam sem bandeira nem documentos de bordo, o que dificultava ainda mais a tarefa dos abolicionistas daquela altura, bem como dos historiadores de hoje.

Durante a expansão dos impérios europeus, os navios de tráfico – veleiros com cascos longos equipados com uma ou duas velas triangulares – simbolizavam no imaginário ocidental o tráfico de escravos africanos no oceano Índico. No entanto, estes navios de origem árabe, conhecidos pelo termo inglês dhow, abarcavam mais de oitenta tipos diferentes de veleiros, sem qualquer ligação particular ao tráfico de escravos. Porém, a partir da década de 1870, estes navios e os seus marinheiros tornaram-se a encarnação, na imprensa europeia, do «derradeiro tráfico» a ser combatido, acabando por servir para estigmatizar «os árabes», «os muçulmanos» ou o Islão, embora este tráfico global, tal como o do Atlântico, não possa ser reduzido a uma única religião ou origem . É o que ilustra claramente a gravura do Illustrated London News de 1889, que apresenta traficantes «árabes».

Era rapidamente esquecido o facto de que este comércio foi dominado pelos europeus durante a primeira parte do século e que, durante a segunda metade, muitos navios «escravos» navegavam sob bandeiras ocidentais com tripulações e capitães suaílis vindos dos quatro cantos do oceano Índico.

O tráfico de escravos no oceano Índico ocidental não era exclusivo, mas acompanhava a circulação das mercadorias que constituíam os fluxos comerciais nesta zona. Entre elas, as especiarias, o café, o marfim, as pérolas, as tâmaras, o copal, o peixe seco e as armas. Misturadas com o tráfico de seres humanos, estas mercadorias eram transportadas em navios entre os portos da costa oriental de África (Lamu, Mombaça, Zanzibar, Kilwa), do Mar Vermelho (Aden, Mukulla, Mocha), do Golfo de Omã (Mascate, Sour), do Golfo Pérsico (Bandar Abbas, Bushire, Basra) e da costa ocidental da Índia (Diu, Surat, Bombaim, Calecute, Cochim).

O principal objetivo do tráfico de seres humanos no oceano Índico era fornecer mão de obra escrava para as plantações de cravo-da-índia e de coco que medravam na costa oriental de África pelo Sultanato de Zanzibar a partir da década de 1840. Esses escravos eram igualmente utilizados para satisfazer as necessidades das plantações de tâmaras e das obras de irrigação na Península Arábica, bem como das frotas de pesca de pérolas no Golfo Pérsico e no Mar Vermelho. Em Madagáscar, a ilha era abastecida de escravos a fim de desenvolver a agricultura e a industrialização. O tráfico abastecia igualmente o mercado interno de escravos das classes abastadas da região, bem como as caravanas de carregadores que transportavam marfim para a costa.

Em França, apesar da abolição do tráfico de escravos (1817) e da escravatura (1848), o comércio ilegal continuou a abastecer as plantações coloniais francesas no oceano Índico com escravos e «trabalhadores contratados», como ilustra o caso do Djamila. Este comércio deu origem a uma nova forma de tráfico entre a África Oriental, as Comores, Madagáscar e a Reunião. Durante a segunda metade do século XIX, cerca de 50 000 «trabalhadores contratados» foram «recrutados» pelos plantadores destas ilhas .

Um tráfico de longa duração

Embora tenha sido combatido no seu apogeu pelas potências europeias, que estavam em plena expansão colonial, o tráfico de escravos só mais tarde entrou em declínio. A abolição e a colonização apenas o abrandaram significativamente, sem no entanto o erradicar. Os historiadores demonstraram que este comércio só terminou efetivamente após a Grande Guerra, quando o comércio de tâmaras e pérolas da Arábia entrou em colapso como resultado da globalização. Contudo, é de notar que continuou de forma residual até, pelo menos, à década de 1950. O almirante britânico Lord West, evocando os seus primeiros anos de serviço no oceano Índico ocidental, recorda que nessa altura embarcou, ao largo da costa de Omã, num navio que transportava pessoas escravizadas. Tratava-se de jovens mulheres de Zanzibar, raptadas para serem vendidas algures no Golfo Pérsico, onde a escravatura só tardiamente foi abolida, como no Qatar em 1952 e em Omã em 1970 .

Notas
1 Cônsul Ansley para Earl Granville, 30 de novembro de 1880, in House of Commons Parliamentary Papers (HCPP) 1882 (C3160), anexo no N°35, p. 144.
2 Os «trabalhadores contratados» ou «sob contrato» assinavam um contrato de trabalho por um determinado período (geralmente três, cinco ou sete anos) em troca de um salário. Viviam uma nova forma de servidão. Ver Michèle Marimoutou-Oberlé, «L'engagisme à La Réunion», https://www.portail-esclavage-reunion.fr/documentaires/abolition-de-l-esclavage/apres-l-abolition/engagisme/
3 https://www.slavevoyages.org/. «Slave Voyages» visa compilar uma base de dados digital acessível de dados históricos relativos a todas as viagens de tráfico de escravos no Atlântico e no continente americano. O projeto foi lançado pelo Emory Center for Digital Scholarship da Universidade da Califórnia e pela Universidade da Califórnia.
4 https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates.
5 Matthew S. Hopper, « East Africa and the End of the Indian Ocean Slave Trade », Journal of African Development, vol. 13, n° 1, 2011, p. 41.
6 Matthew S. Hopper, Slaves of One Master: Globalization and Slavery in Arabia in the Age of Empire, Yale University Press, 2015; Henri Médard et alii (dir.), Traites et esclavages en Afrique orientale et dans l’océan Indien, Karthala 2013; Hideaki Suzuki, Slave Trade Profiteers in the Western Indian Ocean: Suppression and Resistance in the Nineteenth Century, Palgrave Macmillan, 2017.
7 Matthew S. Hopper «Slaves of One Master: Globalization and the African Diaspora in Arabia in the Age of Empire» in Atas da 10ª Conferência Internacional Anual do Gilder Lehrman Center, 7-8 de novembro de 2008, Universidade de Yale, p.5.
8 Gwyn Campbell, “Servitude and the Changing Face of the Demand for Labor in the Indian Ocean World c. 1800-1900” in Robert Harms et alii (dir.), Indian Ocean Slavery in the Age of Abolition, Yale University Press, 2013, p.34.
9 Richard B. Allen, European Slave Trading in the Indian Ocean, 1500‑1850, Ohio University Press, 2015 p.38.
10 Thomas Vernet «La splendeur des cités swahili» in l'Histoire, n.º 284, 2004: «Os Swahili formam uma sociedade homogénea, estabelecida na orla costeira da África Oriental, entre Mogadíscio e o sul de Moçambique (…), no arquipélago das Comores e no noroeste de Madagáscar (…) onde floresceu uma cultura urbana e marítima, de religião islâmica, especificamente africana mas impregnada de influências árabes e indianas».
11 Abdul Sheriff, Slaves, Spices and Ivory in Zanzibar, Currey, 1987, p.231.
12 Henri Médard « La plus ancienne et la plus récente des traites » in Traites et esclavages en Afrique orientale, op.cit., p. 65-118.
13 Ibid.
14 Campbell, op. cit., p.32
15 Hubert Gerbeau, “L’océan Indien n’est pas l’Atlantique. La traite illégale à Bourbon au XIXe siècle”, Outre-Mers, no. 336–337 (2002): 79–108.
16 Thomas Vernet, “Slave Trade and Urban Slavery on the Swahili Coast from Medieval Times to Abolition” https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190277734.013.887, Oxford Research Encyclopedias, 17 April 2024.
17 Raphaël Cheriau, Intervention d’humanité, CNRS éditions, 2023, p. 352.
18 Frederick Cooper, Plantation Slavery on the East Coast of Africa, Heinemann, 1997, p.23.
19 Allen, op. cit., capítulo 5.
20 Admiral Lord West, Britain at Sea, Episode 3: Decolonisation”, BBC Radio 4. http://www.bbc.co.uk/programmes/b046j8zm
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