“Denomina-se propriedade (“habitation”) o estabelecimento rural; e proprietário (“habitant”) aquele que a possui”
Capítulo preliminar
O seu pai, Jacques Brunet, tinha chegado há alguns anos a Bourbon, vindo da região do Périgueux, para assumir a administração de uma propriedade em Saint-André, pertencente à família Rochetin. Jacques Brunet casa-se com uma das filhas da família, a crioula Jeanne Rochetin, e juntos têm vários filhos, dos quais Sully Brunet, nascido em Saint-Denis, em 1794, e que cresceu nesta casa.
Em 1811, Sully e o seu irmão mais velho recusam-se a prestar juramento de fidelidade aos ingleses que se tinham apoderado da ilha. Por conseguinte, é forçado a deixar a colónia. Cursou Direito em Paris antes de regressar a Bourbon em 1817 como magistrado. Empenhado no caso Furcy, torna-se mais tarde advogado. A prosperidade da sua firma permite-lhe adquirir propriedades, assumindo a administração de algumas.
Em 1830 deixa Bourbon por razões de saúde e estabelece-se em Paris, onde se torna deputado oficioso da colónia. Durante esta estadia longe de casa, parece não ter exercido funções remuneradas, provavelmente porque os rendimentos das suas propriedades lhe permitem fazê-lo. Regressa em 1833 a Bourbon, por alguns meses, trazendo consigo a nova lei de 24 de abril de 1833 que institui, designadamente, um conselho colonial eleito. Torna-se membro desta assembleia local e é nomeado pelos seus pares para representar os interesses da colónia em Paris. Embarca para a metrópole em outubro de 1834 e consta que nunca regressou à sua terra natal.
Por ocasião da redação das suas memórias (em meados do século XIX), documento destinado ao seu filho Eugene, Sully Brunet evoca a noção de propriedade, singular no contexto de Bourbon .
“Aquilo que ligava a comunidade de colonos era a sua honra, sendo a lei de cada um o respeito daquilo que não lhe pertencia; cada propriedade era uma colónia individual com o seu senhor absoluto e os seus trabalhadores escravos.”
Capítulo Preliminar
Da leitura das suas memórias, constata-se que a propriedade é a componente essencial, a engrenagem básica da sociedade colonial de Bourbon. Funciona simultaneamente como núcleo familiar (que inclui os escravos que lá vivem) e como núcleo económico (as forças produtivas).
“A propriedade (…) é o termo genérico consagrado para qualificar o estabelecimento rural, quer se trate de uma pequena quinta, com uma casa modesta; ou de um latifúndio grandioso característico destas explorações agrícolas de fábricas de açúcar que produziam milhões de quilos; ou desses cafezais, com várias centenas de quintais, que cobriam a ilha antes da introdução da cana-de-açúcar.
A propriedade que estou atualmente a retratar formava, nesses tempos distantes, uma espécie de pequeno Estado com o seu próprio governo: a justiça dos códigos não a penetrava, à exceção daqueles grandes acontecimentos que emocionam uma sociedade. A polícia, de natureza administrativa, era desconhecida. O proprietário era tudo: soberano, juiz, médico, e, apesar desta autoridade absoluta, vivia feliz e tranquilo rodeado da sua família, sendo frequentemente seu professor, e dos seus escravos, a quem tratava com benevolência paterna.”
II, §4
Segundo ele, a propriedade molda, ao ponto de definir os Bourbonnais (habitantes de Bourbon): uma vida rústica e rural, mas também uma topografia particular (relevo e ravinas) que isola os habitantes e promove a sua independência, a tal ponto que torna os proprietários, mestres absolutos, por vezes desconsiderando a lei. Isto ocasionou igualmente muitos abusos da justiça doméstica levada a cabo pelos senhores sobre os escravos, substituindo assim a justiça do direito comum.
“A autoridade do governador estava sem prestígio; tinha sido até aniquilada, do ponto de vista da polícia administrativa e repressiva, pelo caráter dos colonos: estes últimos, fechados nas suas propriedades, moldados pela vida rústica, com afinco no trabalho, sóbrios, senhores de um solo fértil, acidentado e temperado, sem comunicação fácil com a capital, separados entre eles por águas torrenciais, adquirindo vontades de independência e resistência ao poder que, em várias ocasiões, se traduziram em revoltas.”
Capítulo Preliminar
Esta rudeza, independência de carácter e propensão para a autonomia são características familiares a Sully Brunet e que representam os proprietários, bem como toda a colónia, excluindo os escravos.
“Formamos uma civilização à parte, com indícios de uma alta inteligência, vislumbres de uma forte educação, porém misturados com formas rústicas; assombrada por certas características de uma sociedade primitiva, com as asperezas da rudeza, da independência, do desrespeito pelas leis, da paixão pelo duelo.”
V, §12
Sully Brunet evoca as propriedades que frequentou durante a Revolução Francesa e o Império, evocando, de seguida, as propriedades que possuía, todas elas localizadas no quarto nordeste da ilha, de Sainte-Marie a Sainte-Rose. As propriedades da sua infância remetem para uma imagem antiga da propriedade, a do século XVIII, que ainda não tinha sido transformada pela indústria açucareira. Os proprietários abandonaram então as culturas de café e alimentícias para se consagrarem à cana-de-açúcar. Sully deve-lhe em grande medida a sua fortuna, o que explica o seu interesse pela sua tarifação, uma das questões mais importantes para os colonos . As suas relações em Paris, o seu conhecimento do assunto e o seu envolvimento pessoal fazem dele um candidato ideal para a representação dos seus compatriotas na metrópole.
Embora esteja recenseado no registo de nascimento do distrito de Saint-Denis, Sully Brunet afirma ter nascido na propriedade de Bras des Chevrettes, em Saint-André, uma propriedade que era gerida desde há pouco tempo pelo seu pai.
“A propriedade, Bras des Chevrettes (que deve o seu nome à espécie de camarão, vulgarmente chamado de chevrette em Bourbon) … Estou a vê-la. Tenho-a diante dos meus olhos. Tenho na mente a sua divisão, o caminho, os acidentes de terreno, os riachos, a cascata, as árvores; quase aninhada na floresta primitiva, com proporções gigantescas; árvores impenetráveis com vários séculos de idade; esta propriedade era como uma bacia ladeada por dois lados de montanhas, limitada na frente por uma muralha natural, cujo fundo torrencial é quebrado, entrecortado, por águas derramadas em cascata. Estava envolta em lugares virgens, atravessados por numerosos riachos. Um cafezal jovem, com produtos abundantes, ilustrava a sua riqueza: por cima dos seus arbustos verdes, viam-se laranjeiras, árvores de fruta abundantes crescendo sem necessitar cultivo. Este terra de húmus recebia a semente, alimentava a planta, sem fertilizantes, sem qualquer trabalho além da monda. A caça abundante, os cursos de água repletos de peixe; tudo ali nascia, vivia e multiplicava-se com prodigalidade, de tal modo que se torna difícil ter uma noção exata da dimensão desta prodigalidade. A propriedade em forma de aldeia, com a sua casa senhorial, consistia em: uma grande casa principal, dois pavilhões para os estrangeiros, grandes lojas de alimentos e uma cozinha isolada; todas construídas em madeira; um acampamento de cerca de trinta cubatas (para duas pessoas) cobertas de palha; estábulos, e numerosas habitações para encerrar ou guardar animais: tal era o conjunto desta magnífica exploração agrícola.”
II, §3
Jacques Brunet assume a administração da propriedade de Rivières des Roches em 1815, após a partida de Patu de Rosemont para a metrópole. O seu filho Aristide substitui-o nessa administração em 1828. Devido a sérias dificuldades financeiras, salva a sua propriedade apenas graças ao seu casamento com Élise Féry d’Esclands, comprando-a à sua família rica, graças ao dinheiro do dote.
“A Rivière des Roches é uma propriedade de eleição, formada num terreno plano, numa localidade perfeitamente escolhida; uma torrente com este nome delimita-a; torrente essa rica em peixe, límpida, cujo curso é irregular, quebrado, por montes de pedras ferrosas, separado por numerosas lagoas. A dois quilómetros do solar, uma bela cascata de 200 metros projeta-se no meio de árvores que nelas se confundindo parece formar-lhes a origem; o mar vem quebrar-se na foz desta torrente. Esta encantadora propriedade, situada a três quartos de légua da cidade de St Benoît, uma légua da Rivière des Roches, era a minha prisão com os seus limites.”
IV, §7
No seguimento do seu casamento com Catherine Boussu em 1821, Sully Brunet recebe em dote uma propriedade em Sainte-Rose. Sendo ela viúva do Marquês de Saint-Belin, a propriedade chama-se então domínio de Saint-Belin. Torna-se, portanto, proprietário e confia a sua administração a um parente.
“Ao fundo da propriedade, na estrada principal, viro numa longa alameda com 2 fileiras de cravos-da-índia; observo à direita e à esquerda um terreno acidentado, rochoso e vulcânico do qual emerge uma vegetação luxuriante; esta propriedade semi-nova, com 3 hectómetros de comprimento, termina na inclinação de uma montanha coberta de árvores centenárias, cujo topo é a cratera do vulcão.
Chego à plataforma do estabelecimento onde se encontra uma pequena casa, lojas e um conjunto de cerca de sessenta cubatas. (…) Um cavaleiro tinha sido anunciado, desde uma grande distância, a Madame de St-Belin(…); era a época da colheita do cravinho, e um único branco, o seu administrador, alojado a um quilómetro de distância, secundava-a.”
IV, §9
No ano seguinte, comprou outra propriedade, desta vez mais a norte, perto de Sainte-Marie, graças aos rendimentos que obteve dos bens trazidos pela sua mulher, mas também dos da sua firma de advogados.
“Em 1822, fiz a aquisição de Lilibase […] certamente a propriedade mais deliciosa da ilha, com doze hectares, modesta em termos da casa senhorial, ocupando uma posição encantadora: localizada no município de Sainte-Marie, a oito quilómetros de Saint-Denis. Chega-se lá de carruagem, em quarenta minutos, pela estrada principal, que delimita Lilibase a sul, no seu comprimento total de setecentas toesas. Uma fileira de futayes (árvores de grande porte) marca esta linha. Paralelamente, a norte, também na sua totalidade, a rebentação do mar embate numa rocha íngreme de cerca de sessenta a cem pés de altura. Lilibase forma o planalto superior, como uma ampla faixa de vegetação em vários tons. Assim, este pequeno domínio, estreito e delimitado, isola-se, singulariza-se por uma configuração excecional. O rio Santa Maria constitui o limite oriental.
As produtivas terras de cultivo ocupam as extremidades leste e oeste. No centro encontra-se a casa, envolvida por quatro hectares de árvores e arbustos cuja aglomeração proporciona as vistas, as sombras, as parcelas cultivadas, os relevos e os perfis, caminhos de pomares brilhantes, criados com inteligência, porém enriquecidos com águas vivas, irregulares, raios de beleza que o homem nunca fornece.
Estas árvores e arbustos são constituídos por: cafezeiros, laranjeiras, jaqueiras, limoeiros, líchias, cravos-da-índia, palmeiras, coqueiros; a maioria de floração perfumada.
Na frente do solar abre-se uma bela avenida de mangueiras, com filas triplas de cada lado, deixando no meio, em toda a sua extensão um relvado que vai dos degraus da casa, até ao portão que faz fronteira com a estrada principal, deixando passagem para as carruagens em ambos os lados.
No oposto norte da casa, a sala de jantar é o ponto de partida de uma paisagem a perder de vista, sob a cúpula de uma avenida de Albízias, que termina num rochedo íngreme. A vista estende-se ao mar aberto, que é frequentemente navegado por navios com destino a Saint-Denis.”
VI, §5
Após a venda de Lilibase a um bom preço, ele e o seu amigo Leguidec adquiriram a propriedade Justamond, que rebatizaram de La Félicité. Leguidec, a quem foi confiada a administração, não consegue obter lucros suficientes e não pode ser ajudado por Sully, que se encontra muito ocupado com outros assuntos e ainda demasiado inexperiente na indústria do açúcar. Separa-se dela somente em 1833, quando regressa à colónia, após ter registado grandes perdas.
Em 1828, adquiriu a propriedade Bruguier, que se situa ao lado do domínio Bossu, do seu sogro, situado em Sainte-Marie, e que adquire igualmente. Reúne ambas numa só propriedade a que chama La Réserve, dota-a de “uma bomba a vapor, negros e todo o equipamento necessário para criar uma fábrica de açúcar”.
Compra e depois revende, graças a diversas fortunas, várias propriedades deste tipo. Admite, com alguma humildade, pelo menos a um dado momento, que a habitação era para ele o símbolo do sucesso social:
“Na colónia, tornar-se proprietário em proporções consideráveis, fundar uma fábrica de açúcar na sua propriedade é ser-se um grande senhor, à moda do país. Eu queria sê-lo, admito-o.”
IV, §5
Outras casas marcaram Sully Brunet. Citemos em primeiro lugar a propriedade do seu tio, a Ravine des Chèvres (Sainte-Suzanne), que considera ser uma das mais belas da ilha, ou a do Sr. Diris onde frequentou a escola.
“Terei a oportunidade de comparar a escravatura da época com a que existiu durante trinta anos.”
II, §4
Estas três décadas corresponderam ao seu regresso à colónia após 1817 e ao início da industrialização das propriedades, consequência do desenvolvimento da monocultura da cana-de-açúcar.
A propriedade e a escravatura são indissociáveis, uma vez que os escravos trabalham na propriedade. Sully Brunet sempre teve uma relação ambígua com a escravatura, uma instituição que descreveu como uma infeliz necessidade . Em 1817, suspeito de ser demasiado complacente com os escravos, defende-se assim: “Ele [o Comissário-Geral Philippe Desbassayns de Richemont] teme as minhas relações com os negros, e afasta-me da sua supervisão direta para me exilar num distrito onde tenho apenas amigos, onde a minha família goza da maior estima numa propriedade onde tenho cem escravos à minha disposição” .Ele defende-se implicitamente enquanto proprietário, mas também como representante dos colonos em Paris. Admite, no entanto, que é necessário considerar o seu desaparecimento antes que outros (sem interesse no assunto) o façam unilateralmente. Este plano para abolir a escravatura ao longo de dezanove anos valeu-lhe ser posto de lado pelos seus pares da elite colonial local.
Sully Brunet deixa ao leitor a impressão de que nas propriedades da família, os escravos são bem tratados, talvez melhor do que em qualquer outro lugar… O seu irmão mais novo, Auguste, parece ter uma relação menos ambígua com a escravatura. De acordo com a sua biografia escrita pelo seu filho Dufour Brunet (1827-1923), foi um verdadeiro defensor da abolição. De um modo geral, Sully Brunet adota sempre uma atitude paternalista em relação aos escravos, muitas vezes com uma benevolência eivada de um certo desdém e um sentimento de superioridade.
Sully Brunet fornece informações valiosas e descrições de propriedades. É difícil encontrar o rasto de algumas, como Lilibase. Contudo, para além destas descrições factuais, transmite-nos acima de tudo uma atmosfera que considera perdida. A sociedade idealizada da sua infância, ainda intocada pela industrialização, uma sociedade menos desumanizada (independentemente da questão da escravatura), onde ainda existiam laços entre as pessoas.
“Ali, como já vi noutros locais da ilha, receio que a especulação tenha transformado estes deliciosos pomares em campos de canas-de-açúcar, cuja aparência é triste, uniforme, e oferece a perspetiva de um oceano de canas amareladas, sem a menor variedade, sem a interposição de árvores.”
VI, §5
Sully Brunet transmite igualmente a nostalgia que tem deste período, mas também o seu orgulho em ser crioulo de Bourbon porque esta vida na propriedade teria desenvolvido muitas das suas qualidades e forjado o seu caráter (vivendo de modo saudável ao ar livre, relacionando-se com a natureza, desenvolvendo uma robustez física…).
Olhando retrospetivamente para esta época, mas também para esta personagem, muito mais complexa do que ele aceita dizer, Sully Brunet interpela-nos. Transmite uma imagem da propriedade provavelmente demasiado idílica, idealiza-a, visto esta ilha já não existir como tal. Oferece-nos um retrato das propriedades do final do século XVIII até à sua partida em 1834. Ele próprio lamenta a desnaturação da propriedade da sua infância e da sua industrialização. Informa-nos também, de maneira precisa, sobre as derivas especulativas das cessões de propriedades e recorda-nos a necessidade de uma boa administração por parte dos proprietários, bem como a precariedade da monocultura em caso de má colheita. Será que ele ainda se considerava como um proprietário quando estava na metrópole, visto que já não administrava as suas próprias propriedades, contentando-se apenas de auferir uma parte dos rendimentos delas provenientes?
Por fim, e sobretudo, esta imagem aprimorada levanta questões sobre as condições de vida dos escravos que parecem quase fáceis de acordo com Sully Brunet, o que provoca perplexidade. Embora a escravatura seja vista pelo autor como uma instituição que deve desaparecer, ela é considerada por ele mais como uma componente da propriedade na sua globalidade, contudo quase nunca de modo exato, em particular o quotidiano dos escravos e as dificuldades das suas tarefas, bem como os abusos perpetrados contra eles, abusos dos quais obviamente tinha conhecimento e que poderia, no mínimo ter registado nas suas memórias.